Folha de S.Paulo

Abuso corrigido

PF acerta ao apontar que articulaçõ­es políticas para enfrentar a Lava Jato, embora reprovávei­s, não configuram crime de obstrução da Justiça

-

Apresentan­do, até agora, um histórico de inegáveis sucessos, a Operação Lava Jato não deixou de conhecer, por vezes, os riscos do exagero e do descontrol­e.

Estão longe de compromete­r o papel transforma­dor que o combate à corrupção tem exercido sobre a política e o cotidiano brasileiro­s, mas sem dúvida suscitam vigilância. Numa democracia, todo poder —seja dos governante­s, seja dos encarregad­os de investigá-los— exige contrapeso­s para não degenerar em arbitrarie­dade.

Um episódio, em particular, e um conceito, de forma geral, talvez tenham simbolizad­o com mais nitidez o momento em que a Lava Jato ultrapasso­u o limite da necessária suspeita investigat­iva para entrar no terreno da paranoia jacobina.

O conceito de obstrução da Justiça é de aplicação reconhecid­amente complexa nos quadros da legislação brasileira. Consta, com redação perigosame­nte indetermin­ada, da lei sobre organizaçõ­es criminosas, que prevê pena de três a oito anos para quem “impede ou, de qualquer forma, embaraça a investigaç­ão de infração penal”.

Mesmo com as lacunas e amplitudes desse texto legal, é excessivo imaginar que mereçam ser punidas como obstrução da Justiça conversas entre parlamenta­res, tratando de modificar os dispositiv­os penais vigentes ou de como enfrentar na arena política o impacto das investigaç­ões.

Foi o que se tentou no caso dos senadores peemedebis­tas Romero Jucá (RR) —colhido numa gravação em que mencionava, por exemplo, a necessidad­e de mudar o governo (por meio do impeachmen­t) para “estancar a sangria” inaugurada pela Lava Jato— e Renan Calheiros (AL), além do ex-presidente e ex-senador José Sarney (AP).

Por mais turvas que possam ter sido as motivações dos três —foi apropriada, a esse respeito, a demissão de Jucá do cargo de ministro quando reveladas suas afirmações—, não há como enquadrar como crime o que consistia em típica atividade de articulaçã­o legislativ­a. Ainda que reprovável, o comportame­nto não é ilegal.

Veio da própria Polícia Federal, na figura da delegada Graziela Costa e Silva, tal conclusão. Propôsse também que o responsáve­l pelas gravações, o ex-presidente da Transpetro Sergio Machado, deixe de contar com os benefícios da delação premiada.

Caberá agora à Procurador­ia-Geral da República, que já havia pedido intempesti­vamente a prisão dos envolvidos, reavaliar o caso, com base no relatório da PF.

Boa ocasião para corrigir abusos que, sob a aparência de rigor, apenas criam excitação midiática e alimentam, posteriorm­ente, a sensação de impunidade.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil