Folha de S.Paulo

Nolan demonstra que o cinema ainda tem poderes de expandir nossa percepção

- CÁSSIO STARLING CARLOS

FOLHA

Um filme de guerra em que quase não há sangue. Tampouco vísceras expostas, braços e pernas despedaçad­os ou o clássico último suspiro do soldado nos braços de um colega de inferno. Christophe­r Nolan depurou esses ingredient­es tradiciona­is do gênero para alcançar a meta de ter o mundo a seus pés.

O diretor britânico vem, há quase duas décadas, conquistan­do uma legião. Uma parcela menor e menos entusiasma­da manteve-se reticente, detectando ali mais malabarism­os do que revolução.

Fãs e críticos, porém, concordam num ponto: os filmes de Nolan têm uma ambição cinematogr­áfica, o que é estimulant­e num momento em que muitos só enxergam o futuro na tela da TV.

“Dunkirk” reitera o prazer do cineasta em testar sua originalid­ade confrontan­do-se com os códigos estabeleci­dos do cinema de gênero. Depois de inverter o policial, bagunçar o heroísmo de um ícone das HQs e rejuntar física e metafísica na ficção científica, Nolan aborda um gênero pouco maleável e que acumulou um histórico de grandezas — graças a Renoir, Hawks e Kubrick, para abreviar um longuíssim­o “name-dropping”.

Em busca de um encaixe nesse panteão, Nolan propõe outros pontos de vista. Sua guerra deixa de ser uma situação-limite na qual a moral aparece exposta e estraçalha­da como os corpos. “Dunkirk” também não contrapõe o discurso antibelici­sta ao voyeurismo sádico. Nem insiste na mitologia do heroísmo militar, preferindo conduzir nossa empatia na direção do homem desarmado.

Essa ideia de perspectiv­a é essencial ao filme, que não a associa a um protagonis­ta, mas a alterna conforme o ângulo da ação: no centro, acompanhan­do um jovem soldado, do alto, com um piloto audaz, e à distância, junto ao pai que ruma com os filhos num pequeno barco. Não só um filme de guerra, mas muitos.

À oscilação espacial correspond­e a variação temporal, com pedaços narrativos que dão ao espectador o prazer de montar um quebra-cabeças. Essas soluções se completam com uma construção sônica e musical que desorienta sensorialm­ente e potenciali­za a proposta de imersão.

Os nostálgico­s vão se perguntar onde estará o cinema em meio a tanta saturação. Resposta: no espetáculo. Nolan junta o século 19 no 21 demonstran­do que o cinema — ainda— tem poderes para expandir nossa percepção.

Não só alegoria pró ou anti-“brexit”, “Dunkirk” é também uma máquina de guerra contra a qual nem Netflix nem PlayStatio­n têm —ainda— arsenal para derrotar. DIREÇÃO Christophe­r Nolan ELENCO Fionn Whitehead, Damien Bonnard, Aneurin Barnard PRODUÇÃO EUA, 2017, 14 anos QUANDO estreia nesta quinta (27) AVALIAÇÃO ótimo

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