Folha de S.Paulo

OS ÚLTIMOS DIAS DE MOSSUL

Retomada da principal cidade iraquiana nas mãos da milícia terrorista Estado Islâmico pelo Exército do país deixa rastro de corpos de combatente­s e de civis

- ANDRÉ LIOHN EM MOSSUL

Corpos de homens mortos pelo Exército iraquiano durante retomada de Mossul

A cena onde os últimos combatente­s do EI foram mortos só poderia ser comparada a um inferno. Soldados reviravam o entulho buscando armas e documentos sem se importar com o fato de que seus passos eram sobre os corpos dos terrorista­s, mas também sobre os de mulheres e crianças

COLABORAÇíO PARA FOLHA,

“Você não tem medo de mim? Você não se assusta comigo?”

“Não, eu sei que você não me atacaria sem ter uma ordem para fazer isso.” “Não, eu nunca faria isso.” “Mas você gostaria de receber essa ordem?” “Claro!” Ali, apenas o sol não precisava de uma ordem superior para ser violento, a temperatur­a já estava acima dos 50°C. Sem refrescar, o vento quente daquela manhã em Mossul entrava por nossas narinas misturado à poeira e ao fedor nauseante e oleoso dos incontávei­s corpos que apodreciam por toda parte.

Ao nosso lado, o corpo de um homem, jogado de bruços sobre as cinzas da vegetação queimada, ainda deixava sangue fresco escorrer através de vários ferimentos.

Haider e seus soldados o haviam executado segundos antes. Estávamos sob a ponte mais antiga de Mossul, destruída meses antes por ataques aéreos que isolaram as partes leste e oeste da cidade. Ali, a polícia federal iraquiana havia montado o que chamava de “armadilha” contra militantes do Estado Islâmico tentando fugir atravessan­do o rio Tigre a nado.

Haider, um primeiro tenente de 32 anos da cidade de Bagdá, era o responsáve­l por ativar a armadilha todas as vezes que uma presa, exausta ou ferida, sendo carregada pela correnteza, tentasse encontrar refúgio entre as ferragens da ponte que se contor- ciam atravessan­do aquela parte do rio.

Apesar do rosto sério e abatido, de sua expressão de terror e cansaço, quando foi capturado pelos soldados da primeira divisão da polícia federal, ao sair do rio, o homem estendido morto a poucos metros de nossos pés aparentava boas condições físicas. CELULARES Ao contrário dos milhares de civis que haviam deixado aquela mesma parte da cidade, esquelétic­os e doentes, seu corpo estava bem nutrido, seus braços eram fortes e suas costas eram largas como as de alguém que se exercita especifica­mente para isso.

Seu cabelo era curto e sua barba suficiente­mente longa para que um soldado o tirasse da água puxando-a.

Ele vestia uma calça escura que chegava até pouco abaixo de seus joelhos e usava uma camiseta branca com TURQUIA SÍRIA Mossul Bagdá IRAQUE a palavra “Flórida” estampada sobre o desenho de uma paisagem muito diferente daquela em que ele se encontrava naquele momento.

Tentava, desesperad­amente, se comunicar com os soldados que o espancavam, gritavam e filmavam toda a situação com seus celulares.

Dizia repetidame­nte que não era um combatente: “Ana last Daesh, Ana last Daesh Saidi!”.

Suas forças e suas esperanças de sobreviver duraram apenas os poucos metros e minutos que os soldados iraquianos precisaram para arrastá-lo enquanto o despiam, rasgando suas roupas violentame­nte.

Sem suportar a dor e a humilhação dos golpes e ameaças que recebia, em total desengano, o homem permitiu que seu corpo caísse sem nenhuma resistênci­a sobre o chão para ser imediatame­nte executado com diversos disparos de fuzis e pistolas.

Contente, Haider começou a caminhar em direção à sombra, sorrindo ao lado de seus soldados enquanto comparavam entre si os vídeos do assassinat­o que haviam acabado de cometer.

Um boicote contra a mídia havia sido imposto pelo Exército iraquiano, restringin­do severament­e o acesso de jornalista­s ao front.

Mas os meses que estive embutido com a polícia federal nas linhas de frente de Mossul e a confiança que esses soldados tiveram em mim permitiram que eu estivesse presente naquele momento.

No entanto, testemunha­r as consequênc­ias da última batalha contra a milícia do Estado Islâmico não aconteceu sem que eu sofresse ameaças de prisão e, por fim, fosse forçado a deixar o local sob a promessa de disparos vindos de um comandante das forças especiais do Exército.

O dia 17 de julho marcava exatamente­umasemanad­esde que o premiê iraquiano, Haider al-Abadi, havia estado em Mossul para declarar oficialmen­te a vitória sobre a facção terrorista que durante três anos controlou a cidade e chegou a ameaçar invadir a capital, Bagdá.

A necessidad­e de uma “armadilha” para eliminar combatente­s do Estado Islâmico ainda ativos na cidade, porém, deixava claro que a declaração de vitória, se não fosse prematura, havia sido feita para servir a algo outro à verdade. MÍSSEIS A poucas centenas de metros corrente acima, soldados das forças especiais iraquianas ainda combatiam os últimos militantes do Estado Islâmico.

Os disparos de seus fuzis só foram abafados com a chegada de um helicópter­o do Exército que, com voos rasantes e mergulhos agudos, disparava mísseis e rajadas de metralhado­ra contra um determinad­o ponto também às margens do rio Tigre.

Os ataques aéreos duraram menos de uma hora. Em um vídeo divulgado em redes sociais pelo Exército, uma câmera instalada no helicópter­o mostra como alguns poucos sobreviven­tes foram mortos enquanto tentavam inutilment­e se esconder dos disparos e explosões.

Eufóricos com a iminência de uma vitória definitiva, soldados de todos os batalhões começaram a festejar enquanto observavam o que parecia ser um show de acrobacias aéreas a poucos metros de seus olhos.

Uma nuvem de poeira fina se levantou, irritando ainda mais os olhos e as narinas de todos. Um jovem soldado usando uma bandeira iraquiana como se fosse uma capa de super-herói e dois companheir­os escalavam as ruínas dos prédios destruídos para chegar ao ponto recém-conquistad­o.

Braços, pernas, cabeças, centenas de corpos inteiros ou destroçado­s, decompondo há muito ou há pouco tempo, estavam espalhados por todas as partes, por cima e embaixo de um enorme amontoado de escombros.

A cena onde os últimos combatente­s do Estado Islâmico e suas famílias foram mortos só poderia ser comparada a um inferno.

Soldados reviravam com pressa todo o entulho ao redor, buscando armas e documentos sem se importar com o fato de que praticamen­te todos os seus passos eram sobre os corpos dos terrorista­s, mas também sobre os corpos de mulheres e crianças.

A menos de dois metros de tocar as águas do rio Tigre, o corpo sujo de um bebê vestindo apenas uma camiseta camuflada ainda estava inteiro jogado debaixo de pedaços de metal e arame farpado.

Seu nascimento e sua morte haviam ocorrido há pouco.

Sob seus pés, um retrato colorido de um homem jovem que não aparentava ser iraquiano. O corpo ressecado pelo sol de uma mulher estendida em forma de crucifixo e os corpos mutilados de pelo menos outras quatro crianças mais velhas estavam a poucos metros de distância. Seriam eles seu pai, sua mãe e seus irmãos e irmãs?

Como se tivessem marcado um encontro para caminhar de mãos dadas, a gestação daquela criança e as ofensivas militares que derrotaram o EI em Mossul haviam começado nove meses antes.

Agora, continuam aqueles que nascem e vivem com as consequênc­ias de crimes cometidos para que uma paz embrionári­a possa também um dia existir no Iraque.

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André Liohn/Folhapress

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