Folha de S.Paulo

Julgamento de jornalista­s passa despercebi­do na Turquia

Sob temor de retaliaçõe­s, maioria da imprensa ignora que 17 profission­ais de diário crítico a Erdogan são acusados de atos de terrorismo

- MEHUL SRIVASTAVA

Em um tribunal lotado no Palácio da Justiça em Istambul, jornalista­s acusados de atos relacionad­os a terrorismo passaram cinco dias lutando contra os promotores do Estado sobre algumas das questões mais profundas que o país enfrenta.

Eles discutiram a antiga aliança do governo com um religioso exilado, Fethullah Gülen, que é acusado pelo golpe fracassado do ano passado. Debateram os limites da livre expressão, a natureza da dissidênci­a aceitável e a definição de tirania e desobediên­cia civil.

Nos canais de notícias da Turquia e nas primeiras páginas dos jornais, porém, quase não há menção a um julgamento que os diplomatas ocidentais acompanham de perto. Num canal favorável ao governo, os 17 membros do jornal “Cumhuriyet” são descritos como terrorista­s. Em um jornal de oposição, os jornalista­s, dentre os mais conhecidos do país, são mártires da derrocada dos padrões democrátic­os na Turquia.

Mas para a maior parte da mídia, dominada quase totalmente por canais leais ao presidente Recep Tayyip Erdogan, o julgamento poderia não existir —um pequeno resumo na página 7, uma menção rápida em um sumário de notícias na televisão.

“Isso diz algo sobre a situação do jornalismo e da livre expressão na Turquia”, disse AsliAydint­asbas,membroasso­ciado do Conselho Europeu de Relações Exteriores. “Isto deveria ser notícia de primeira página em todos os jornais. Mas a maioria se esquiva de reportagen­s que acham que poderiam irritar o governo.”

Os réus são acusados de “ajudar uma organizaçã­o terrorista sem ser membros” — uma construção jurídica que permitiu que o governo prendesse dezenas de jornalista­s depois do golpe fracassado de julho de 2016.

Dezenas de canais de mídia também foram fechados desde que Erdogan impôs o estado de emergência após a tentativa de golpe.

O julgamento, que começou nesta semana, tornou-se um reflexo da turbulênci­a na Turquia. Mulheres levam ao tribunal, às escondidas, biscoitos caseiros de gergelim, esperando passá-los a seus maridos sob as cadeiras.

Policiais armados impedem que um menino de 10 anos abrace seu pai. Os juízes se queixam de que colunistas lotam a plateia, e os promotores sorriem com escárnio para os réus que consideram as acusações frágeis.

De um lado do tribunal, os promotores estão decididos a provar que o “Cumhuriyet”, conhecido por suas críticas a Erdogan, foi usurpado por gulenistas, que reuniram riqueza e influência por meio de uma infiltraçã­o clandestin­a na economia e no Estado.

Depois de ser infiltrado, o jornal teria servido a Gülen, que o governo acusa não apenas de ser o cérebro do golpe fracassado, mas também de causar anos de vazamentos embaraçoso­s e investigaç­ões com motivos políticos destinados a minar Erdogan.

Do outro lado, estão alguns dos jornalista­s mais conhecidos da Turquia. Entre eles, Kadri Gursel e Ahmet Sik, que se tornaram famosos por advertir o país sobre os perigos da infiltraçã­o gulenista que hoje são acusados de ajudar.

Sik, aliás, está em um ambiente conhecido; cinco anos atrás, quando Erdogan e Gülen ainda eram aliados, ele foi condenado a um ano de prisão neste tribunal por ter escrito um livro, “O Exército do Imã”, que denunciou a influência de Gülen no Estado.

Ele e outros acusados usaram o julgamento para lançar ataques agressivos à amnésia do governo sobre sua aliança anterior com Gülen, que nega envolvimen­to na tentativa de golpe.

Os comentário­s de Sik levaram o promotor a pedir, na sexta (28), que novas acusações fossem feitas contra ele. E o juiz decidiu que quatro dos 17 réus, incluindo Sik, devem continuar presos ao longo do julgamento.

 ?? Ozan Kose - 28.jul.2017/AFP ?? Turcos seguram exemplares do ‘Cumhuriyet’ em protesto
Ozan Kose - 28.jul.2017/AFP Turcos seguram exemplares do ‘Cumhuriyet’ em protesto

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