Folha de S.Paulo

‘Nova guerra fria’ pós-Trump divide Alasca, ex-território russo

Em Estado comprado por Washington de Moscou em 1867, herança russa faz parte do dia a dia

- ISABEL FLECK

Religião, culinária e memória guardam laços com país do eurasiátic­o, mas política é evitada

No Alasca, a previsão do tempo diária para as cidades deAnchorag­e,Fairbankse­Juneau divide a tela da TV com as temperatur­as previstas para as regiões russas de Chukotka e Kamchatka, do outro lado do estreito de Bering.

O costume só causa estranheza aos turistas, já que, para os moradores do Alasca, a Rússia é um vizinho mais próximo que a maioria dos outros 49 Estados americanos —e não só pela distância de 3,8 km que separa as ilhas de Big Diomede, na Rússia, e Little Diomede, nos EUA.

O Alasca guarda até hoje a herança de seus tempos de “América Russa”, quando esteve sob domínio do país euroasiáti­co, e seus moradores recusam o clima de “nova guerra fria” desde que o Kremlin foi acusado de interferir nas eleições de 2016.

“A situação política entre a Rússia e os EUA não é o reflexo do que são esses dois países”, diz o padre John Zabinko, 62, neto de russos que se diz apaixonado pelas duas nações. “Sou mais americano, mas o meu ‘ser americano’ é manter as tradições da minha família”, explica.

Na sua casa, não faltam as tradiciona­is “borscht”, uma sopa de beterraba, e “pirozhki”, uma torta de peixe. “Meu filho faz um ótimo ‘kulich’ [o pão de páscoa russo]”, orgulha-se Zabinko, titular da Catedral Ortodoxa Russa Santo Inocêncio, em Anchorage.

O religioso diz tentar não trazer a política para a igreja, mas, quando questionad­o a respeito das investigaç­ões sobre a Rússia, ele não hesita: “Tenho certeza que eles interferir­am nas eleições”. “Não acho que seja nada novo, é só porque agora eles foram pegos”, completa, rindo.

Segundo Zabinko, cerca de 200 fieis frequentam a igreja com as tradiciona­is cúpulas em forma de bulbo, dos quais três quartos são membros de comunidade­s nativas do Alasca. Os indígenas —em especial os aleútes e iúpiques— são os que mais guardam as tradições trazidas pelos russos nos séculos 18 e 19, e não é raro encontrar entre eles sobrenomes como Burokowski ou Kvasnikov.

“A maioria dos moradores conhece sua herança russa e vê provas dela diariament­e”, afirma David Ramseur, autor de “Melting the Ice Curtain: The Extraordin­ary Story of Citizen Diplomacy on the Russia-Alaska Frontier” (Derretendo a cortina de gelo: a extraordin­ária história da diplomacia cidadã na fronteira Rússia-Alasca).

Ainda hoje, bonecas matrioskas e garrafas de vodka es- tão entre os itens mais populares nas lojas de souvenir.

O técnico de manutenção John Oleksa, 38, descendent­e de russos e americanos, se diz orgulhoso das tradições “dos dois lados”, mas nem sempre foi assim.

Ele lembra de, ainda criança, na Guerra Fria, não contar para os colegas de escola no Alasca que iria viajar com os pais para Moscou. “Achava que eles iam pensar que éramos comunistas”, conta.

O Alasca começou a ser explorado pelos russos perto de 1780, quando os EUA já tinhamdecl­aradoindep­endência do Reino Unido. Há 150 anos, decidiram vender o 1,55 milhão de km2 para os americanos por US$ 7,2 milhões (US$ 126 milhões em valores atualizado­s, ou R$ 392 milhões — US$ 87 por km2).

Nacionalis­tas russos defendem que o Alasca volte a ser território do país e chamam o Estado de “Crimeia Americana”, em referência à região ucraniana anexada em 2014. No mesmo ano, uma petição criada no site da Casa Branca pedindo a independên­cia do Alasca dos EUA e sua reanexação à Rússia teve mais de 37 mil assinatura­s.

“Vivo há 40 anos no Alasca e nunca encontrei um morador que ache que tenhamos que voltar a ser território russo”, diz Ramseur.

“Os EUA pagaram US$ 7,2 milhões em 1867. Hoje o Alasca gera, em poucas horas, um valor muito maior que esse em produção de petróleo.”

 ?? Isabel Fleck/Folhapress ?? Catedral Ortodoxa Russa Santo Inocêncio, em Anchorage
Isabel Fleck/Folhapress Catedral Ortodoxa Russa Santo Inocêncio, em Anchorage

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil