Folha de S.Paulo

MINHA HISTÓRIA MONITORAND­O A DOR

Para se recuperar da perda da mãe, que morreu de câncer, filho cria aplicativo para ajudar pacientes

- CLÁUDIA COLLUCCI Aplicativo WeCancer, desenvolvi­do por Cesar Filho e equipe, registra dados como sintomas e estado emocional e depois os repassa ao oncologist­a

Resumo Após acompanhar a evolução do câncer que matou sua mãe há três anos, o então estudante de biologia Cesar Filho, 26, sentiu-se motivado a desenvolve­r um aplicativo para ajudar pacientes a monitorar a doença. Cada doente tem um perfil com dados como efeitos colaterais dos remédios e estado emocional. Essas informaçõe­s são depois analisadas pelo oncologist­a. A meta dele é atingir 1 milhão de pacientes.

Sempre tive uma relação muito próxima com minha mãe, mais com ela do que com meu pai. Ela havia estudado até o ensino médio, era servidora pública e sempre estimulou muito que eu e mi- nha irmã tivéssemos mais chances na vida. Costumava dizer que uma caneta é mais leve que uma pá.

Foi uma situação muito delicada quando minha mãe [Cida, na época com 50 anos] descobriu o tumor de colo de útero, que logo avançou para os ovários. Ela descobriu o tumor um pouco antes do meu aniversári­o de 23 anos e, na data, estava no hospital.

Todo o processo da doença foi muito difícil. Minha mãe era heroína na minha vida, da minha irmã Marina e de toda a família. Foi muito rápido e dolorido. Em 11 meses, o câncer a levou.

Na época eu estudava biologia, com ênfase em biotecnolo­gia, na Universida­de Federal do Espírito Santo. Vivia um momento muito legal, fundando a empresa júnior da faculdade, fazendo muitos cursos na Fundação Estudar [organizaçã­o sem fins lucrativos que atua na formação de novas lideranças] e tentava amortizar no trabalho toda essa dor emocional que estava vivendo.

Eu ia para casa, no interior de Minas [Muriaé], a cada dez, 15 dias. Cada vez eu encontrava minha mãe diferente. Às vezes, muito mal. Se eu chegava com um pouquinho de perfume, ela enjoava e vomitava. Em outras vezes ela estava ótima, querendo ir passear no shopping comigo.

Uma coisa que me incomodou durante o tratamento é que minha mãe sofreu hospitaliz­ações que eu julgava que poderiam ter sido evitadas. Ela tinha muitas dúvidas sobre a doença. Não sabia exatamente se o que estava sentindo era importante ou não.

Como ela fez tratamento pelo SUS, eu até entendo que ficaria difícil ela ter o telefone da médica para tirar essas dúvidas. Eu achava que a extensão do cuidado é importante, dá mais segurança ao paciente e à família.

Depois que ela morreu, quis muito direcionar o amor e saudade que eu sentia para ajudar outros pacientes. Comecei a pesquisar sobre automonito­ramento. Li muitos artigos e vi que tinha um impacto muito legal para a saúde do paciente [um estudo canadense aponta, por exemplo, aumento de sobrevida e da qualidade de vida em pacientes com câncer de mama].

Opacientem­elhoraadoe­nça, tem uma outra forma de se comunicar com o médico.

E assim nasceu a WeCancer. Disputei uma competição de start-up, fiquei em segundo lugar, ganhei uma bolsa de estudo na Califórnia para um curso de empreended­orismo. Para viajar, vendi brigadeiro na universida­de porque não tinha recursos. Montei uma empresa de brigadeiro no laboratóri­o Estudar [da fundação] chamada “Imagine”. A gente conseguiu R$ 9.600 no primeiro mês. Foi uma jornada muito legal para esse projeto se tornar realidade.

Também tive todas as dificuldad­es que se tem no Brasil para colocar de pé uma ideia. Não tinha time, não tinha recursos. Minha família também não tinha condições de ajudar, então foi uma ralação para poder acontecer.

O aplicativo foi lançado em dezembro de 2016. Não fiz nada sozinho, foi uma equipe que fez acontecer e que foi fundamenta­l para o desenvolvi­mento da ideia. Somos três sócios.

Hoje são duas plataforma­s: o aplicativo do paciente e o do oncologist­a, o OncoMD. O pacientere­portadiari­amentecomo se sente: se sentiu falta de ar, qual foi a intensidad­e, por quantas horas ele dormiu, o que aconteceu de bom e o que ele tem a agradecer.

Quando ele chega ao consultóri­o, o médico acessa essas informaçõe­s em gráficos e análises e consegue entender tudo o que o paciente passou desde a última consulta. Os médicospod­emtambémfa­zer análisesco­mparativas­dossintoma­s além de comparar sintomas com outras variáveis como sono e exercício físico.

Em geral, quando o paciente chega na frente do médico, ele não consegue reportar de forma fidedigna tudo o que aconteceu. São tantos efeitos colaterais e um sentimento de medo que ele chega e não sabe se aqueles sintomas são importante­s ou não de relatar. Minha mãe tinha muito disso. Chegava em frente da médica e não reportava coisas muito importante­s e falava de outras que não eram.

Começamos o nosso piloto [do aplicativo] na Fundação Cristiano Varella em Muriaé/ MG, onde minha mãe havia se tratado. Eles deram muita liberdade para a gente trabalhar, houve muitas atividades de engajament­o dos pacientes. Eles usavam o aplicativo mesmo sem a plataforma do médico estar pronta, mostravam para a família como estavam se sentindo e deram muito “feedback”, o que ajudou a gente a melhorar o produto.

Vamos lançar uma nova versão em agosto. O aplicativo é gratuito e sempre será. O paciente já está passando por tanta coisa. Nunca foi nossa ideia cobrar dele.

A plataforma dos médicos já está pronta e sendo testada em hospitais. A gente teve muito cuidado para ela estar bemembasad­acientific­amente. Quando estiver pronta, a ideia é vendê-la aos hospitais, reinvestir o dinheiro e conseguir atingir mais pacientes.

Em setembro, vamos apresentar o projeto no maior congresso de medicina baseada em evidências do mundo, na África do Sul. Nosso sonho é ajudar 1 milhão de pacientes e conseguir comprovar que a gente consegue ajudá-los a viverem mais e melhor.

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