Folha de S.Paulo

Reportagem elege os musos da festa e subverte tradição sexista

Autoras que vieram à Flip debater literatura já foram destacadas por serem lindas ou sexies

- FERNANDA MENA FRANCESCA ANGIOLILLO PATRÍCIA CAMPOS MELLO

‘De fato, a eleição de musas pode desvaloriz­ar a mulher como ser pensante’, diz Guilherme Flores

Jovem, linda. Charmosa, provocante, sex symbol. Vestida assim ou assado: o casaquinho insuficien­te, o short curtíssimo. A boca vermelha, as pernas bronzeadas. Ela rouba as atenções.

Todos os adjetivos e descrições acima já foram usados em artigos e reportagen­s para tratar de escritoras que vieramàFli­papresenta­rseustraba­lhos e debater literatura.

Entre elas, estão a cubana WendyGuerr­a,aargentina­Pola Oloixarac, a franco-iraniana Lila Azam Zanganeh e a portuguesa Matilde Campilho.

No ano em que a representa­ção feminina é majoritári­a na Flip, a Folha subverteu a tradição sexista de destacar atributos físicos de escritores apenasquan­dosãodosex­ofeminino e elegeu seus musos: o poeta e tradutor Guilherme GontijoFlo­res,oatoreescr­itor Lázaro Ramos e o rapper e ativista angolano Luaty Beirão.

Aeles,a Folha fez perguntas em geral dirigidas a mu- lheres considerad­as belas e bem-sucedidas: qual a rotina de beleza, os cuidados com o corpo e a dificuldad­e em conciliar carreira e filhos.

As respostas, bem-humoradas, foram acompanhad­as de um tanto de surpresa. “Nunca ninguém me perguntou uma coisa dessas na vida. É o tipo de pergunta em geral dirigida às mulheres. Em Angola é a mesma coisa. Tratase de um país extremamen­te machista”, disse Beirão.

“É engraçado me ver nessa posição”, explicou Flores. “Eu tenho medo de acharem que eu sou apenas um rostinhobo­nitosemcon­teúdo.Espero que valorizem também meu trabalho”, brincou o poeta, para quem esse tipo de inversão tem valor provocativ­o e promove reflexão.

“De fato, a eleição recorrente de musas pode desvaloriz­ar a mulher como ser pensante igualmente importante e igualmente fundamenta­l para a nossa literatura,banalizand­o-a,porquefaz com que sua beleza repercuta mais do que seu trabalho.”

A curadora atual da festa, Joselia Aguiar, diz ter “pesquisado muito” a história do evento antes de montar sua edição. Fazendo a ressalva de que “era muito natural, todo mundo fazia daquele jeito”, diz ter notado um padrão na escolha das convidadas do sexo feminino.

“Percebi que mulher, para ser chamada, em geral era muito linda e de uma certa idade. Era mais raro que uma mulher mais velha viesse.” Quando acontecia, pondera, era alguém incontorná­vel, como a Nobel bielorruss­a Svetlana Aleksiévit­ch, convidada no ano passado.

Aguiar disse ter ficado com a impressão de que os homens convidados, por outro lado, poderiam ser de qualquer tipo: velhos, novos, carecas, gordos, magros.

“Não sei se desta vez os homens que vieram são mais bonitos que a média. Será que é porque eu sou uma curadora mulher? Teria sido algo muito inconscien­te”, diz.

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