Reportagem elege os musos da festa e subverte tradição sexista
Autoras que vieram à Flip debater literatura já foram destacadas por serem lindas ou sexies
‘De fato, a eleição de musas pode desvalorizar a mulher como ser pensante’, diz Guilherme Flores
Jovem, linda. Charmosa, provocante, sex symbol. Vestida assim ou assado: o casaquinho insuficiente, o short curtíssimo. A boca vermelha, as pernas bronzeadas. Ela rouba as atenções.
Todos os adjetivos e descrições acima já foram usados em artigos e reportagens para tratar de escritoras que vieramàFlipapresentarseustrabalhos e debater literatura.
Entre elas, estão a cubana WendyGuerra,aargentinaPola Oloixarac, a franco-iraniana Lila Azam Zanganeh e a portuguesa Matilde Campilho.
No ano em que a representação feminina é majoritária na Flip, a Folha subverteu a tradição sexista de destacar atributos físicos de escritores apenasquandosãodosexofeminino e elegeu seus musos: o poeta e tradutor Guilherme GontijoFlores,oatoreescritor Lázaro Ramos e o rapper e ativista angolano Luaty Beirão.
Aeles,a Folha fez perguntas em geral dirigidas a mu- lheres consideradas belas e bem-sucedidas: qual a rotina de beleza, os cuidados com o corpo e a dificuldade em conciliar carreira e filhos.
As respostas, bem-humoradas, foram acompanhadas de um tanto de surpresa. “Nunca ninguém me perguntou uma coisa dessas na vida. É o tipo de pergunta em geral dirigida às mulheres. Em Angola é a mesma coisa. Tratase de um país extremamente machista”, disse Beirão.
“É engraçado me ver nessa posição”, explicou Flores. “Eu tenho medo de acharem que eu sou apenas um rostinhobonitosemconteúdo.Espero que valorizem também meu trabalho”, brincou o poeta, para quem esse tipo de inversão tem valor provocativo e promove reflexão.
“De fato, a eleição recorrente de musas pode desvalorizar a mulher como ser pensante igualmente importante e igualmente fundamental para a nossa literatura,banalizando-a,porquefaz com que sua beleza repercuta mais do que seu trabalho.”
A curadora atual da festa, Joselia Aguiar, diz ter “pesquisado muito” a história do evento antes de montar sua edição. Fazendo a ressalva de que “era muito natural, todo mundo fazia daquele jeito”, diz ter notado um padrão na escolha das convidadas do sexo feminino.
“Percebi que mulher, para ser chamada, em geral era muito linda e de uma certa idade. Era mais raro que uma mulher mais velha viesse.” Quando acontecia, pondera, era alguém incontornável, como a Nobel bielorrussa Svetlana Aleksiévitch, convidada no ano passado.
Aguiar disse ter ficado com a impressão de que os homens convidados, por outro lado, poderiam ser de qualquer tipo: velhos, novos, carecas, gordos, magros.
“Não sei se desta vez os homens que vieram são mais bonitos que a média. Será que é porque eu sou uma curadora mulher? Teria sido algo muito inconsciente”, diz.