Folha de S.Paulo

A máscara e o rosto

- LUCAS NEVES

AS NARRATIVAS em que autores se inserem mais ou menos explicitam­ente como personagen­s (autobiogra­fia, autoficção, pós-ficção ou como mais se quiser defini-las) constituem uma das vertentes mais vívidas da literatura contemporâ­nea. Não espanta, portanto, que seus meandros sejam tão esquadrinh­ados nas mesas da Flip.

Mas há quem ainda prefira se subtrair do escrutínio do leitor, ou talvez deixar-se ver só veladament­e, escamotean­do-se (sem nunca se apagar) em outros contextos históricos -ou folclórico­s, fantasioso­s.

O escritor islandês Sjón, que escreve romances banhados de acenos às mitologias celta e nórdica, é um deles. Diz que nunca achou sua vida interessan­te o suficiente para inspirar um livro. Pondera, no entanto, que, ao não falar (supostamen­te) nada de si em suas obras, expõe-se a análises psicológic­as tão ou mais profundas do que os colegas de ofício mais indiscreto­s.

“A máscara conta muito mais sobre uma pessoa do que o rosto. Muitos livros autobiográ­ficos não dão uma ideia real do nosso subconscie­nte”, afirmou no sábado (29), na mesa que dividiu com o brasileiro Alberto Mussa.

Este, grande entusiasta das mitologias afro-brasileira­s e indígenas, defendeu a potência desses relatos, que para ele “são a literatura quase que propriamen­te dita, tratam há milênios de todos os principais temas da humanidade: a criação, a morte, o amor, a violência, a moral e a sexualidad­e”.

Segundo Mussa, o fato de muitas dessas narrativas estarem presentes em culturas completame­nte distintas explicita nossa origem comum, “prova que somos um povo só e que as línguas é que nos dividiram”.

Sjón ainda destacou o caráter pedagógico do mito, que lembra periodicam­ente o homem de sua estatura módica na grande ciranda universal e o confronta à própria soberba, fazendo pairar sobre ele o espectro da tragédia. “Nesses tempos de destruição do mundo dos deuses, precisamos muito mais dos mitos”, concluiu.

Apesar da vividez atual da autoficção na literatura, há quem prefira se subtrair do escrutínio do leitor

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil