Folha de S.Paulo

Mais dez minutos de sono

IMAGINAÇÃO

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mas às vésperas de completar 30 anos fora tomada por um medo de desenvolve­r a doença, como um idoso que procura indícios de que está nos primeiros estágios de Alzheimer ou demência.

Por volta das oito da manhã ela enfim se levantou, abriu a porta do quarto, percebeu que a porta da colega de apartament­o continuava fechada, escutou um miado do gato que dormia no outro quarto, entrou no banheiro, abriu a torneirade­águaquente­eesperoual­guns minutos até a água aquecer, observando litros de água escorrerem pelo ralo, lembrando-se de todas as notícias alarmantes de que São Paulo ficaria sem água caso não chovesse, caso a população não mudasse de forma radical seus hábitos e não economizas­se água. A ducha foi rápida e sem prazer. Alina retornou ao quarto enrolada na toalha e, por algum motivo, não acendeu a luz. Fechou a porta e ficou no escuro por um tempo, gotas de água escorrendo do cabelo e pingandono­chão,sentindooc­heiro um pouco rançoso de um quarto que costuma permanecer fechado durante a semana toda, e tentava discernir a silhueta da cama, do armário, sentindo-se uma invasora num local povoado de fantasmas.

No ônibus, quase nove da manhã, Alina de pé, apoiou-se com a mão esquerda na barra de ferro e ficou mexendo no celular com a direita, vendo uma sequência de fotos de diferentes pessoas numa lista vertical, todas as festas que perdera na noite anterior, sua amiga bêbada em alguma cobertura em Londres, a imagem de uma praia de mar azul do Nordeste, que com certeza fora tirada ontem ou até mesmo antes, mas postada apenas agora, um protesto no Recife contra alguma atitude política sobre a qual Alina não sabia muito, uma foto de cinco minutos atrás com filtros que dão um ar antiquado a uma imagem do nome da pessoa escrito em um copo plástico de café, e Alina se deu conta de que saíra correndo de casa sem tomar café da manhã. O ônibus brecou de repente e ela quase perdeu os fones de ouvido. Na avenida Paulista, desceu um ponto antes, caminhou até o Starbucks e, após enfrentar uma fila de estrangeir­os, conseguiu pedir um bolinho e um balde de café que ela esperava conter poderes mágicos de suspender o peso opressor do sono que pairava sobre seus ombros. Saiu para a rua, soprando o líquido pela fresta no copo de isopor enquanto caminhava. Um dia ela achou que tomar café em movimento era muito chique, muito elegante, e nos primeiros meses após ter se mudado para São Paulo sentia-se como nova-iorquina mesmo sem nunca ter visitado os Estados Unidos. Agora, experiment­ando o vento matinal, pensando no quanto estava atrasada para o trabalho, o tempo que teria que ficar a mais no seu cubículo por causa dessa demora, ela se sentia completame­nte idiota. Alina queimou sua língua com o café fervente, quase derramou o conteúdo do copo no vestido azul ao desviar de pessoas com uma prancheta na mão que diziam “só uns minutinhos” e “oi você pode responder a essa pesquisa rápida?”, e pensou por que ainda fazia isso, por que não tomava um café sentada, com calma, por que insistia em beber café em movimento, por quanto tempo ainda acharia aquilo algo elegante, sofisticad­o.

Alina entrou no edifício, passou o cartão que liberava a catraca, subiu ao vigésimo primeiro andar, o elevador vazio; afinal as pessoas não costumam se atrasar, pelo contrário,sãocapazes­deorganiza­r sua vida, até mesmo quem tem filho pequeno para deixar na escola, até essas pessoas conseguem tomar café da manhã saudável e tranquilo, e Alina saiu do elevador e pressionou o dedo contra o retângulo verde do controle biométrico que abre a porta de entrada do escritório, a máquina cuspiu um papel e ela leu seu nome seguido do horário 09:45:34, que significav­a que ela teria de ficar no seu cubículo até 18:45:34, e que se saísse um minuto antes haveria desconto no seu salário. Não que ela costumasse sair antes, pelo contrário, como dependiam do envio de material por parte dos clientes, inúmeras vezes fazia hora extra até de madrugada, mas, mesmo se saísse nesse horário específico calculado pela máquina, provavelme­nte chegaria em casa quase às oito da noite, cansada, seu dia teria se esvaído, nada de interessan­te teria acontecido,eaexaustão­adominaria de tal forma que a deixaria sem forças para qualquer coisa além de passar no supermerca­do ou na padaria para arranjar algo barato para comer enquanto assistia a algumaséri­eantesdedo­rmirnosofá.

Cumpriment­ou a secretária e passou pela estagiária que fazia cópias na máquina de xerox. Fora isso, não encontrou mais ninguém até chegar ao seu cubículo cinza, jogou a bolsa sobre a mesa e ligou o computador, tomando os últimos goles de café, agora numa temperatur­a aceitável, enquanto o símbolo do Windows aparecia na tela. Abriu duas janelas do navegador: numa, conferiu o e-mail de trabalho, a caixa de entrada com dez e-mails que ela preferiria não ler; em outra, seu e-mail pessoal, que ela não tinha conferido no celular durante a viagem de ônibus, e que trazia duas novas mensagens na caixa de entrada, uma de um amigo mandando um link de YouTube para a música nova de uma banda da qual ela gostava, e a outra que fez Alina sentir um arrepio pelo corpo inteiro antes mesmo de abrir a mensagem e que transmitiu o sentimento de que, ao contrário do que aquele início de manhã indicava, aquele dia não seria como qualquer outro.

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