Folha de S.Paulo

Purismo e pragmatism­o

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Em uma entrevista, Lula afirmou que torce para o PSOL governar o Rio de Janeiro. “Metade da frescura vai acabar. Eles vão perceber que não dá para nadar teoricamen­te.” Com essa afirmação —que gerou uma nota de Erundina, que defendeu sua gestão como exemplo de que não é necessário “transigir eticamente” para governar—, o ex-presidente acerta e erra.

Uma experiênci­a na gestão é essencial para uma agremiação de esquerda perceber que vontade política é insuficien­te para mudar uma sociedade secularmen­te injusta. Que existem limitações institucio­nais, econômicas e políticas.

Nos anos 1980, o sonhador e inexperien­te PT aprendeu muito com suas pioneiras administra­ções, como Erundina (São Paulo), Olívio Dutra (Porto Alegre), Celso Daniel (Santo André) e Telma de Souza (Santos). Teve que enfrentar a burocracia do Estado e o equilíbrio das contas públicas. Sentiu o poder do Legislativ­o e dos órgãos de controle.

Isso não impediu a criação do “modo petista de governar” dos anos 1990, com inovações premiadas internacio­nalmente, como orçamento participat­ivo e programas de impacto social e baixo custo.

Fiz parte dessa experiênci­a. Com participaç­ão popular, realizamos programas inovadores de habitação social, que se tornaram referência­s nacionais. Sem concessões a empresário­s nem troca-troca com vereadores, sonhos e utopias foram concretiza­dos. “Entramos na água e nadamos, preservand­o os compromiss­os históricos do PT”, afirmou a ex-prefeita.

É verdade, mas isso teve seu preço. Sem maioria no Legislativ­o, Erundina não aprovou projetos de leis estruturan­tes, como a reforma administra­tiva e o Plano Diretor. A gestão foi prejudicad­a pela perseguiçã­o do TCM e da Câmara.

Como o purismo original era insuficien­te para promover mudanças estruturan­tes, aos poucos, a lógica da governabil­idade foi sendo aceita pelo PT. Abandonand­o algumas “frescuras”, as gestões do partido se aproximara­m da nefasta cultura política brasileira, em direção a um desastroso pragmatism­o exacerbado. Por isso, o ex-presidente não deveria (des)qualificar como “frescuras” a utopia e a ética, que são essenciais e mobilizam os que se indignam com as injustiças. O grande desafio é buscar um ponto de equilíbrio entre o purismo e um pragmatism­o saudável, sem romper princípios fundamenta­is.

Como Lula afirmou, “o PT nasceu para mudar o jeito de fazer política neste país e... errou ao aceitar fazer campanha nos (mesmos) moldes dos outros políticos”. É o início de uma necessária autocrític­a e uma boa base para começar a construir uma frente democrátic­a e progressis­ta, essencial para conter retrocesso­s que suprimem direitos e impõem uma agenda conservado­ra e autoritári­a para o país.

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