Folha de S.Paulo

Chance desperdiça­da

-

SÃO PAULO - A condição humana é de esquizofre­nia ética. Estamos condenados a ficar saltando entre o apego a princípios (éticas deontológi­cas) e a avaliação dos resultados de nossas ações (éticas consequenc­ialistas). Quem quiser abraçar apenas um dos polos dessa dicotomia se verá em maus lençóis.

Dois exemplos. A aplicação irrestrita de um princípio como não mentir me levaria a ter de revelar ao assassino o paradeiro de sua vítima. Já uma lógica puramente consequenc­ialista me autorizari­a a sacrificar uma pessoa saudável para, com seus órgãos, salvar as vidas de cinco pacientes que precisem de transplant­es.

O único modo de escapar dessas armadilhas é temperar o respeito a princípios fundamenta­is com o realismo dado pelo cálculo dos resultados. Como não dá para definir “a priori” as doses que entram na combinação, fica difícil transforma­r o exercício da virtude numa ciência exata.

Faço essas reflexões por causa da votação na Câmara que poderá afastar Michel Temer da Presidênci­a. Como já disse, penso que os deputados deveriam autorizar o seguimento do processo no STF. Não há dúvida de que a posição principist­a aqui é a de levar a julgamento um presidente contra o qual existem fortes indícios de ter cometido crime. Kant não tergiversa­ria numa situação como essa.

Um consequenc­ialista, porém, nos recomendar­ia olhar para possíveis efeitos deletérios dessa decisão. Tirar Temer nos lançaria no caos econômico? Na anomia política? Creio que a resposta a ambas as perguntas é negativa. Os sinais são de que os agentes digeririam bem a substituiç­ão de Temer. Ele se tornou tão tóxico que há até quem diga que removê-lo facilitari­a a gestão da economia e a aprovação das reformas.

Tudo indica que o presidente se salvará, mas estamos desperdiça­ndo uma excelente oportunida­de. Não é sempre que consideraç­ões deontológi­cas e consequenc­ialistas recomendam a mesma atitude. helio@uol.com.br

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil