Folha de S.Paulo

Falangetas pérfidas

- RICARDO ARAÚJO PEREIRA COLUNISTAS DA SEMANA: sábado: José Simão, domingo: Marcius Melhem, segunda: Gregorio Duvivier, terça: José Simão, quarta: Reinaldo Figueiredo, quinta: José Simão

DIZEM QUE William Carlos Williams estava no quintal da casa de um velho pescador, e que o homem tinha acabado de lhe falar da sua vida de trabalho e de como não sentia frio nem mesmo quando os pés estavam na água gelada.

Então, Williams viu de longe um carrinho de mão vermelho e escreveu o poema que hoje conhecemos: “tanta coisa depende/ de// um carrinho de mão/ vermelho// perlado de gotas de/ chuva// junto das galinhas/ brancas”.

Sempre que pensava nesta história, em todas as suas ricas sugestões e pormenores, ocorria-me a mesma ideia: os pais de William Williams tinham pouca imaginação para nomes. Mas, no outro dia, a minha amiga Maria estava no computador e apertou o botão “curtir” por baixo de um comentário.

Eu, por razões de saúde, não tenho redes sociais, mas a Maria explicou-me o que se passava. Aquela era uma curtida de retaliação.

Uma amiga dela tinha tido a desfaçatez de curtir uma fotografia de uma pessoa da qual a Maria não gostava. Foi uma curtida especialme­nte humilhante para a Maria, uma vez que não se tratava de um mero “curtir”: a amiga tinha apertado o botão em que o bonequinho amarelo está a rir com a boca aberta e os seus olhos são o símbolo de maior e menor que.

O fato de o bonequinho estar abandonado à gargalhada daquele jeito, a ponto de os olhos se fecharem em forma de sinais matemático­s, indicava que a amiga da Maria tinha gostado bastante da foto, talvez não tanto quanto se ela tivesse apertado o botão do coração cor-de-rosa, mas em todo o caso o suficiente para ferir a sensibilid­ade da Maria.

Por isso, Maria tinha agora curtido o comentário de um ex-namorado da sua amiga. Com a falangeta do indicador, ela apertou o botão do mouse e fez levantar a falangeta do polegar azul, lá no monitor. Tudo decorria no âmbito das falangetas.

Maria tinha ficado ofendida com a atitude da falangeta cretina da amiga, e levantava uma falangeta vingativa através da sua falangeta ressentida.

Eu devia ter desconfiad­o. Há muito que a polícia anda de olho nas falangetas. São as primeiras a ser investigad­as, quando o suspeito entra na delegacia. Não é por acaso. É óbvio que são a parte mais perigosa do corpo.

Foi quando vi a mão da minha amiga no mouse, ainda tremendo de desforço, que me ocorreu o poema: “tanta coisa depende/ de// uma falangeta/ trêmula //latejando de/ agastament­o// sobre um mouse da/ Logitech”.

Há muito que a polícia anda de olho nas falangetas. São as primeiras a ser investigad­as na delegacia

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Luiza Pannunzio/Folhapress

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