Folha de S.Paulo

CRÍTICA Romance de terror tem humor venenoso

Rainha do horror, Shirley Jackson era acusada de fazer vodu para editor e tinha gatos com nomes de demônios

- ALVARO COSTA E SILVA

FOLHA

Shirley Jackson já é craque nas primeiras linhas. Seu romance recém-lançado “Sempre Vivemos no Castelo” começa assim:

“Meu nome é Mary Katherine Blackwood. Tenho dezoito anos e moro com a minha irmã Constance. Volta e meia penso que, se tivesse sorte, teria nascido lobisomem, porque os dois dedos médios das minhas mãos são do mesmo tamanho, mas tenho de me contentar com o que tenho. Não gosto de tomar banho, nem de cachorros nem de barulho”.

O parágrafo inicial de “The Haunting of Hill House” (“A Assombraçã­o da Casa da Colina” na edição da Francisco Alves de 1983, hoje uma raridade de alto preço nos sebos) é reconhecid­o como um dos mais intrigante­s começos da moderna ficção americana:

“Nenhum organismo vivo pode existir com sanidade por longo tempo em condições de realidade absoluta; até as cotovias e os gafanhotos, pelo que alguns dizem, sonham. Hill House, insalubre, permanecia solitária em meio às montanhas, guardando em si a escuridão. Permanecer­a assim por 80 anos e poderia continuar dessa forma por mais 80. (...) O silêncio permanecia inalteráve­l contra a pedra e a madeira de Hill House, e o que por lá andasse, andava sozinho”.

Stephen King —um dos muitos admiradore­s da autora, ao lado de Donna Tartt, Neil Gaiman, Richard Matheson, Joyce Carol Oates— considera a descrição acima “o tipo de epifania que todo escritor almeja: palavras que de alguma forma transcende­m a palavra”.

“Shirley... quem?”, você está se perguntand­o. De óculos estilo gatinho, gordinha e rosto assustado na maioria dos fotos, Shirley Hardie Jackson (1916-1965) parecia a vizinha da frente.

Mas era uma talentosa escritora, que gozou de certa popularida­de em vida, publicou um conto que enfureceu leitores e, ao morrer, entrou no limbo.

Aos poucos, recuperou o prestígio, a ponto de ter, em 2010, sua obra incluída no catálogo da Library of America.

Na década de 1940, enquanto cuidava de quatro filhos, Shirley escrevia divertidas histórias sobre a vida doméstica, que faziam a delícia das assinantes da “Mademoisel­le”, “Good Housekeepi­ng” e “Woman’s Day”.

Foi nessa época que teve um estalo, na fila do caixa, na hora de pagar as compras, e o conto “The Lottery” lhe veio todo à cabeça.

Publicado em 1948 na revista “The New Yorker”, o relato provocou centenas de cancelamen­tos de assinatura da publicação e milhares de cartas indignadas.

“A Loteria” —existe uma versão em português na “N.T - Revista Literária em Tradução”, por Ana Resende— narra um ritual macabro. É bom parar por aqui, para não estragar a surpresa de quem ainda não leu.

Apesar da repercussã­o ne- gativa, com o tempo a história foi adaptada para rádio, teatro, televisão, coreografa­da para balé e virou figurinha fácil em antologias.

Sobretudo mudou a vida da autora, que, a partir de então, à J. D. Salinger, recusou-se a dar entrevista­s e ficou rotulada como a rainha do terror. Um terror, digamos, doméstico.

Ao lado de “A Assombraçã­o da Casa da Colina” (1959) —que inspirou um filme de Robert Wise, estrelando Claire Bloom—, “Sempre Vivemos no Castelo” (1962) é a obra mais famosa da autora.

Também é a última que publicou (e vem aí uma adaptação para o cinema, com produção de Michael Douglas). O livro está mais para o claustrofó­bico do que para o gótico. Com doses de humor negro e venenoso.

Numa pequena cidade da

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Divulgação A escritora americana Shirley Jackson, em foto de 1951

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