Folha de S.Paulo

E culpa no casal, que consente que ela continue morando ali.

-

FOLHA

O título “Acre” se refere ao Estado da região norte. Mas também remete, como lembra o narrador deste livro de Lucrecia Zappi, à unidade de medida agrária.

Os dois sentidos aparecem vinculados a contextos sociais que vão se insinuar de modo sorrateiro numa trama de ciúme obsessivo, até tomarem o centro da narrativa.

Em seu segundo romance, a autora cria um pútrido veio subterrâne­o que liga o inferno conjugal às paranoias de classe, manejando com habilidade dois planos narrativos.

No primeiro, temos o narrador Oscar e sua mulher, Marcela.

Depois de viverem numa quitinete do centro de São Paulo, eles moram num apartament­o da Vila Buarque — bairro onde Oscar crescera e que virou símbolo de uma classe média que, antes próspera, agora divide o espaço com craqueiros e travestis.

Pequenos empresário­s, eles acabam de reformar o apartament­o e comprar o imóvel contíguo, pertencent­e a uma senhora que vive em semi-indigência e desperta um misto de piedade, implicânci­a TENSÃO A chegada de Nelson, filho da vizinha, que vivera no Acre metido em negócios suspeitos, deflagra a tensão entre Oscar e Marcela.

Os três haviam se conhecido durante a adolescênc­ia em Santos, onde se envolveram em disputas entre gangues de surfistas e traficante­s que eram, também, disputas amorosas.

O retorno do forasteiro com quem a mulher tivera um caso, e que agora é seu vizinho, desperta ciúmes doentios no narrador, mas também abre um segundo plano narrativo, para além do entrecho amoroso.

Os pequenos atos de delinquênc­ia cometidos em Santos —revividos em flashbacks saborosos para quem foi jovem nos anos 1980 (maconha do “verão da lata”, bandas de rock emergentes, o fantasma da Aids freando o idílio contracult­ural)— se transforma­m, no Brasil de hoje, em signo da catástrofe sistêmica.

Se a vizinha Vera tem nostalgia dos acres de terra que um dia possuíra, seu filho MEXERICOS Numa cena onírica de errância pela madrugada no centro da cidade, o narrador será testemunha e cúmplice de atos de violência física e simbólica cometidos pelo síndico do prédio —médico que, tão logo despe seu avental, desvela também o rosto xenófobo e homofóbico por trás da cordialida­de que mitiga assimetria­s sociais, além de nele inocular o vírus da suspeita e engatar o episódio de suposto adultério no trilho do crime.

Entre mexericos de condomínio —é isso que nos diz o romance de Lucrecia Zappi— eclodem recorrênci­as psicossoci­ais que fazem da classe média brasileira refém do Velho Oeste que ela mesma criou. Seja no Acre, seja no quarteirão ao lado. AUTORA Lucrecia Zappi EDITORA Todavia QUANTO R$ 44,90 (208 págs.); R$ 29,50 (e-book) AVALIAÇÃO bom

 ??  ??
 ??  ??
 ?? Margaret Gibbons/Divulgação ?? A escritora Lucrecia Zappi, que lança pela editora Todavia seu segundo romance, ‘Acre’
Margaret Gibbons/Divulgação A escritora Lucrecia Zappi, que lança pela editora Todavia seu segundo romance, ‘Acre’

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil