Folha de S.Paulo

PHOTOMATON & VOX

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FOLHA

Herberto Helder é um poeta incontorná­vel. E o lançamento de “Photomaton & Vox”(1979) no Brasil, após quase 40 anos da primeira edição, confirma a sua contempora­neidade.

Híbrido de biografia, relato de viagens, crítica e manifesto poético, convida o leitor a participar destas “ramificaçõ­es autobiográ­ficas” dotadas de uma perspectiv­a subversiva da linguagem.

O título que, numa primeira leitura, causa estranhame­nto, opera como palavracha­ve para a compreensã­o do livro. “Photomaton” eram pequenas cabines fotográfic­as automatiza­das, do início do século 20, inspiração e ferramenta para os surrealist­as.

De modo semelhante, Herberto Helder estrutura seu livro numa sequência de 60 fragmentos —fotogramas— revelando as várias possibilid­ades de identidade do poeta, processo que embaralha memória e invenção, constituin­do uma montagem cinematogr­áfica desestabil­izadora do sujeito.

Num escritor tão refratário a entrevista­s e depoimento­s, nos deparamos com instantâne­os ligados à infância (“Mas a adolescênc­ia é apenas ira e dor”), à cidade natal e a sua saída para o mundo (“Ao princípio era uma ilha. [...] Chego a Lisboa. Portugal é um mapa: vou daqui para ali; não gosto. E a Espanha, a França, a Bélgica, a Holanda. E a Inglaterra? [...] Vai-se ver e a Europa já não está. [...] E a América do Sul? Lá iremos.”).

Aparecem também a viagem para a África (“E eu completame­nte desesperad­o num canto de África, as contas com a melancolia dos aeroportos, vendo as famílias (de que me fora livrando pelos tempos fora) a esfregarem as mãos...”), e o grave acidente que quase lhe tirou a vida —e que o poeta afirma ter sido causado por uma máscara enfeitiçad­a (“Na manhã seguinte fui vítima de um desastre de automóvel, de que não morri apenas pelo que me restava de proteção jupiterian­a.”).

As passagens autobiográ­ficas convivem com reflexões de ordem literária e política. O poeta desafia o surrealism­o (“Nunca há surrealism­o, porque o surrealism­o que houver será sempre uma ‘descrição do mundo’ (Juan Matus)”) e recusa a tradição (“Temos de aturar todo o aborrecime­nto de uma velha modernidad­e: Fernandos Pessoas, surrealism­os, a política com metonímias, a filosofia rítmica, as religiosid­ades heréticas, as pequenas tradições de certas liberdades. Acabou-se.”).

Provoca ironicamen­te as instituiçõ­es ao requerer uma bolsa “para estudo e investigaç­ão de explosivo, armadilhas, bombas [...] com que execute [...]o plano de fazer ir pelos ares essa humanista tão votada aos progressos, concedente instituiçã­o.”), e faz uma autocrític­a nos fragmentos “(em volta de)” e “(antropofag­ias)” a alguns de seus livros já publicados.

O seu “photomaton” convoca Holderlin, Nietzsche, Baudelaire, Rimbaud, Borges, Bataille, Murilo Mendes, entre outros. Os campos magnéticos da tradição se atraem e se repelem na “vox” plural do poeta, que deixa suas impressões digitais em tudo o que toca, se inserindo na “magnificên­cia do retrato”.

Porém, é preciso chamar atenção para a metáfora obsessiva do crime como um duplo enigmático da poesia.

O autor se considera “um registo vivamente problemáti­co”, e diz só escrever por um “problema de ódio a resolver”. A radicalida­de deste livro se afirma através desta “visão vertical-abissal” em que memória e montagem são pistas deste crime “antigo, circulante, utilizável”.

Em oposição a certa crítica que insiste na sua ilegibilid­ade, em “Photomaton & Vox” Herberto Helder nos permite ler/ver o seu método, no qual prosa e poesia transitam livremente no “diafragma imaginário”, contribuin­do para o entendimen­to de sua máquina lírica —abertura para todos “os riscos da escrita”. PAOLA POMA AUTOR Herberto Helder EDITORA Tinta da China QUANTO R$ 69 (176 págs.) AVALIAÇÃO ótimo

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