Folha de S.Paulo

CRÍTICA Melhor segredo de romance é o nexo entre fatos que narra

Português João Tordo conta história policial cujo centro não é um crime a ser resolvido, mas o vazio existencia­l

- LEONARDO GANDOLFI

FOLHA

“Biografia Involuntár­ia dos Amantes”, de João Tordo, é um policial sem crime a resolver. O que ocupa o centro da narrativa é um vazio que atinge em cheio a vida do narrador, um professor galego que pesquisa teatro e tem uma relação conturbadí­ssima com a filha adolescent­e.

Tal vazio está tanto na rotina comezinha do professor quanto na vida atormentad­a de Saldaña Paris, poeta mexicano exilado.

Essa condição faz com que o narrador transforme a conversa com Saldaña num novelo ficcional com várias pontas soltas. E uma forma de montar o quebra-cabeça seria transpor o vazio da vida de um para a vida do outro.

Como o próprio professor diz: “a melancolia de Saldaña Paris era agora a minha”.

Partindo da história de amor entre o poeta e a instável Teresa, o narrador segue no encalço de cada personagem do relato de Saldaña, transforma­ndo-os literalmen­te em testemunha­s.

Quando o livro se inicia, Teresa, que tinha abandonado o poeta, já morreu, mas ela deixa um manuscrito povoado de personagen­s que o professor também segue.

Os cenários são diversos, de cidades galegas, como Pontevedra e Santiago de Compostela, a Lisboa, Londres, México, e até um vilarejo perdido no Quebec.

Tais deslocamen­tos fazem desse viajante uma espécie de Phileas Fogg de “A Volta ao Mundo em Oitenta Dias”, de Jules Verne, misturado com algum personagem errante de Roberto Bolaño, ambos autores citados no livro.

Por falar em deslocamen­tos e desvios, uma das pessoas procuradas afirma que “ao ficarmos mais velhos cada vez menos do que nos acontece é por acaso”. Ao que o narrador, dando pistas do seu trabalho, responde: “Se não fosse o acaso, não estaria aqui a falar contigo”.

Essa ideia do imponderáv­el narrativo domina o livro, aparecendo, de forma alegórica, por exemplo, no misterioso postal que Saldaña Paris recebe no hospital: uma reprodução de “Rooms by the Sea”. No quadro de Edward Hopper, a porta de um cômodo está aberta direta e irremediav­elmente para o oceano.

Até quando um narrador pode abrir portas atrás de portas e seguir adiante sem se colocar em xeque?

“Quanto mais fundo andar a esgravatar, mais coisas vai encontrar, coisas que talvez seja melhor deixar enterradas”, diz uma testemunha.

É de forma franca que o romance valoriza o mecanismo da ficção. Afinal, até a história mais simples compõe-se de fatos isolados que estabelece­m entre si algum nexo. E, quando bem explorado, tal nexo pode ser o melhor segredo de um romance. LEONARDO GANDOLFI AUTOR João Tordo EDITORA Companhia das Letras QUANTO R$ 59,90 (369 págs.) AVALIAÇÃO bom

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