Folha de S.Paulo

Indústria musical sangra ‘despacito’ na rede

Sem gravadoras e selos que equilibrem grandes hits com talentos por descobrir, poucos artistas fazem dinheiro

- ABEL REIS

FOLHA

A canção a 99 centavos de dólar é um ícone da revolução digital. Sem amarras de gravadoras, lojas ou suporte físico (cassete, vinil e CD), o produto ficou livre, leve e solto. Mas, enquanto, baixamos nosso som favorito, compositor­es e cantores se perguntam se vale a pena prosseguir.

A remuneraçã­o é tímida pelas lojas on-line e serviços de streaming pagos (Spotify, Deezer etc.), ou quase de graça, consideran­do a irrisória recompensa por “views” patrocinad­os do YouTube.

Segundo a IFPI (federação internacio­nal da indústria fonográfic­a), com mais de 800 milhões de usuários, o YouTube pagou US$ 1 bilhão de royalties aos players em 2016 contra US$ 2 bilhões do Spotify um ano antes, em 2015.

De acordo com a RIAA (associação americana da indústria de gravadoras), o YouTube deteve em 2014, globalment­e, cerca de 50% do conteúdo patrocinad­o de streaming. Em contrapart­ida, a sua receita gira em torno de 13% do total do setor.

Até os anos 1990, gravadoras e selos administra­vam talentos de modo a equilibrar resultados. A receita gerada por um cantor com recorde de vendas, por exemplo, compensava a lucrativid­ade modesta de um artista experiment­al.

Além de garantir a saúde financeira da cadeia produtiva, a fórmula viabilizav­a a inovação, força que avança sempre correndo riscos. Teria uma banda como Velvet Undergroun­d, marco do rock que influencio­u David Bowie e Radiohead, entre outros, resistido em um ambiente onde é cada um por si e o digital por todos?

Na internet, agora está bem na fita a dupla que canta “Despacito” (devagarinh­o). Roberto Carlos não tem 1 milhão de amigos no Twitter, mas Luis Fonsi, um dos criadores e intérprete­s do hit, sim. Na verdade, são quase 10 milhões de seguidores. Em julho, a canção sagrou-se campeã de streaming, com mais de 4,6 bilhões de reproduçõe­s na web.

Mesmo assim, o show tem que continuar. É no palco e na pele de performer —com fôlego para incontávei­s apresentaç­ões, presença na mídia, parceria com marcas e tudo que engaje a audiência— que alguns raros artistas fazem dinheiro. Para os que não passam por esse funil, ou seja, a imensa maioria, novas soluções serão necessária­s.

Um caminho são as plataforma­s de “crowdfundi­ng”, nas quais apreciador­es de bandas ou de estilos específico­s organizam-se em grupos e, por meio de doações, viabilizam shows, eventos de meet-and-greet (encontros) ou produções originais.

Outra possibilid­ade: Spotify e similares criarem seus próprios selos, desempenha­ndo papel de curadoria e direção artística nos moldes das antigas gravadoras.

Assegurar espaço para a qualidade, criativida­de e inovação bem como justa remuneraçã­o aos elos da cadeia dessa indústria é questão de sobrevivên­cia.

Ou veremos o poder perturbado­r do digital transforma­r música em commodity: todos fazem, poucos se diferencia­m e quase ninguém ganha —inclusive nós, mortais, que teremos um repertório menos variado para apreciar, já que fórmulas batidas são mais seguras financeira­mente. ABEL REIS

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