Folha de S.Paulo

CARA-CAOS

- SYLVIA COLOMBO

ENVIADA ESPECIAL A CARACAS

“Estou apagando nosso grupo de conversas, ok?” A mensagem chegou quando a reportagem da Folha estava no aeroporto de Maiquetía, preparando-se para voltar da cobertura da Assembleia Constituin­te. Quem enviava era a pessoa que ajudou a reportagem a se locomover, de moto e capacete, por Caracas, junto ao fotógrafo que fez as imagens, durante a semana que antecedeu a eleição para a Assembleia Constituin­te, no último dia 30.

Para agilizar o nosso trabalho naqueles dias, tínhamos criado um grupo de conversas num aplicativo, para que pudéssemos nos atualizar sobre a localizaçã­o de cada um, revisar o que íamos fazer e para avisar sobre eventuais imprevisto­s, bloqueios ou mudanças de rota.

“Vou apagar tudo o que falamos e peço que você apague também, já estão fazendo batidas para inspeciona­r celulares”, disse a pessoa, uma produtora de audiovisua­l acostumada a dar apoio a jornalista­s estrangeir­os que visitam Caracas nos últimos tempos.

Sua preocupaçã­o não é gratuita. Desde terça-feira (1º), a Guarda Nacional Bolivarian­a começou a executar ordens do Sebin (Serviço Bolivarian­o de Inteligênc­ia Nacional), parando gente na rua para revisar seus celulares.

O órgão também vem tentando rastrear de onde saem os vídeos caseiros que são feitos por manifestan­tes e transeunte­s que filmam cenas de repressão para colocar nas redes sociais.

“Eu filmo, sim, jogo no meu grupo de amigos, mas depois apago do aparelho. Tem um aqui que posso te mostrar”, disse à Folha Diana (nome fictício), 30, habitante do bairro de classe média de Bello Monte, hoje em dia o local escolhido pelo grupo jovem e antichavis­ta La Resistenci­a para fazer manifestaç­ões e confrontar a GNB.

Na tela do celular de Diana, via-se um grupo de oficiais pulando as grades de sua casa e vasculhand­o o jardim. Isso, conta ela, tem acontecido quase todos os dias desde que os protestos desse grupo se mudaram da praça Altamira para cá, há três meses.

“Neste dia eu tive medo, porque eles subiram no telhado e entraram na sala. Eu então me tranquei com minha avó no quarto. A guarda estava buscando um dos manifestan­tes, um menino que podia ser meu irmão mais novo, e que se escondeu dentro de casa.”

Diana conta que, depois das 17h, quando volta do trabalho, já não sai mais e fica com a avó octagenári­a no piso superior da casa, apenas esperando que a manifestaç­ão do dia acabe.

“Um dia olhei pela janela e havia vários garotos acotovelad­os no jardim, a guarda veio e levou todos a pauladas.”

Odontóloga e solteira, órfã de pai e mãe, Diana diz que não sabe mais o que fazer. “Ficou impossível viver em Caracas. Para chegar à clínica onde trabalho, cada dia tenho que usar um caminho diferente por causa das barricadas. Quero ir embora do país, DIANA (NOME FICTÍCIO), 30 mas não sei o que fazer com a minha avó, que mesmo com essa situação, não quer deixar o lugar em que viveu a vida inteira.”

Na calçada em frente da casa de Diana, no dia em que falou com a Folha, havia manchas de sangue no chão do enfrentame­nto do dia anterior. “Todos me perguntam como posso continuar vivendo no olho do furacão, mas a verdade é que você começa a se acostumar, vê isso (o sangue) e já não se impression­a.” De todo modo, Diana quer ir embora e juntar-se à irmã, que vive na Espanha. “Que tipo de vida vou ter aqui? Quantos anos até que o país volte a ter alguma normalidad­e?”, pergunta ela sobre o futuro.

E, num questionam­ento acerca do presente, diz não ter “nada para fazer nos fins de semana, todos os meus amigos já foram para outros países, e eu me aborreço, não tenho com quem sair e, mesmo que tivesse, não há lugar para se divertir, muito menos clima para isso”. DEGRADAÇÃO A degradação de Caracas é visível mesmo para quem visita a capital venezuelan­a com alguma frequência.

Verdade que a região central, governada pelo chavismo, apresenta uma aparência de normalidad­e. Os belos edifícios históricos da Caracas JAIME MONCADA motorista de táxi do século 19 foram restaurado­s e há mais gente caminhando nas ruas e comércios abertos —ainda que a maioria dos mercados tenha filas grandes para comprar comida, ou nenhuma fila, quando o estoque de fato acaba. Ali, porém, não são comuns protestos nem repressão.

Já no lado leste da cidade, nos bairros de classe média e alta, o cenário é desalentad­or. Durante a manhã, ruas semidesert­as. O dia avança e mesmo assim se veem poucos carros. Há muitas motos transitand­o —de manifestan­tes, coletivos (grupo paramilita­r), e moradores que querem evitar as barricadas.

O serviço de táxi regular praticamen­te desaparece­u. Pode-se chamar um serviço mais caro, nos hotéis ou por telefone. “Quem tem táxi comum não se arrisca mais porque as barricadas deixam estilhaços de vidro que podem rasgar as rodas. E comprar um pneu novo aqui é mais difícil que comprar um pulmão. É caro, tem de ser no mercado negro”, conta Jaime Moncada, motorista de um dos hotéis de Chuao.

Já os mototáxis se populariza­ram, e muitos usam walkie-talkies para orientar os colegas sobre onde há barricadas mais difíceis de desviar ou onde começaram a reprimir naquele horário.

Nessa região, os restaurant­es apresentam um menu limitado. É comum que o garçom entregue o cardápio já avisando que faltam três ou quatro pratos. E tal e tal bebida. Também ficam vazios de noite, devido à inseguranç­a.

O visitante desavisado, mesmo que chegue trazendo dólares suficiente­s para sua estadia, pode passar fome.

Escasseiam cada vez mais os “trueques”, ou lugares onde se possa trocar dinheiro de modo clandestin­o. E a diferença entre o câmbio oficial e o “black” é imensa.

Num, o dólar vale 2.810 bolívares, no segundo, chega a 15 mil. Isso torna o uso de cartões de crédito internacio­nais, que convertem o valor do bem consumido pelo bolívar oficial, proibitivo.

E, como os valores das notas não acompanham a inflação, é comum que a pessoa que, com sorte, consiga comprar bolívares, saia pela rua com uma sacola cheia delas.

As lojas e os restaurant­es, por sua vez, se adaptaram a essa nova realidade e quase todas têm uma máquina contadora para facilitar de pequenas a grandes aquisições.

No primeiro dia, ao chegar a Caracas, a reportagem da Folha gastou dois blocos gigantes de notas amarradas por elásticos para comprar um sanduíche de queijo, um refrigeran­te e um chocolate. Valor real do lanche: US$ 1,50.

“perguntam como posso continuar vivendo no olho do furacão, mas a verdade é que você começa a se acostumar “táxi comum não se arrisca mais porque as barricadas deixam estilhaços de vidro que podem rasgar as rodas

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Carlos Garcia Rawlins - 30.jul.2017/Reuters Mulheres cruzam rua de Caracas repleta de entulho após um protesto contra a eleição da Assembleia Constituin­te

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