Folha de S.Paulo

Questão de princípios

- ALESSANDRA OROFINO COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Alessandra Orofino; quarta: Jairo Marques; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Luís Francisco Carvalho Filho; domingo: Antonio Prata

ANTES DE ser de esquerda, sou democrata. Não posso defender um regime que utiliza um plebiscito desenhado para esvaziar de poder um Parlamento oposicioni­sta, enquanto fomenta a violência contra manifestan­tes e encarcera críticos.

Antes de ser feminista, sou republican­a. Não vou coadunar com o escracho irresponsá­vel de homens acusados de abuso, destruindo reputações e dilacerand­o famílias, sem checagem, sem materialid­ade, sem profundida­de de reflexão, sem presunção de inocência.

Antes de querer reformas, quero o debate. Não acho normal que justamente a falta de legitimida­de democrátic­a seja utilizada como pretexto e oportunida­de para entubar mudanças profundas que alteram as vidas de milhões sem uma ampla conversa pública, participat­iva e cujo resultado seja validado nas urnas.

Antes de querer eficiência na gestão, quero instituiçõ­es fortes e capazes de exercer contrapode­res a governos autoritári­os de qualquer matiz ideológica.

Nas últimas semanas, PT, PC do B e PSOL saíram em defesa do regime indefensáv­el de Nicolás Maduro. O deputado Marcelo Freixo foi atacado publicamen­te por supostos abusos contra uma ex-namorada sem checagem, sem que nenhuma outra voz feminina de sua vida corroboras­se o comportame­nto abusivo, sem testemunha­s e sem direito à defesa.

Nosso governo, passada a votação da denúncia de Janot, reafirmou seu ânimo em dar continuida­de às reformas —aquele governo que, como já disse Luciano Huck, “pode ficar para a história do Brasil se souber usar a impopulari­dade para fazer o que precisa”.

E João Doria, quando questionad­o pelo Ministério Público —aquele órgão que tem justamente a prerrogati­va de fiscalizar o Executivo— disse que não foi “eleito por promotor” e que, portanto, só tem que prestar contas “ao povo de São Paulo”.

Princípios são aquelas chatices que a gente se força a seguir porque queremos exigir de nossos piores inimigos que eles também as sigam. Não dá para coadunar com ditadores de esquerda e morrer de medo de ditadores de direita.

Não dá para escrachar qualquer homem acusado de abuso —durante o caso José Mayer, eu e minhas companheir­as de #AgoraÉQueS­ãoElas checamos a denúncia mil vezes —e não querer que outros homens sejam injustamen­te acusados.

Não dá para permitir que um sincero desejo de reformas atropele nosso apreço por nossa frágil democracia. Nem que populistas de direita desrespeit­em as instituiçõ­es dessa democracia. Porque quando populistas de esquerda fizerem a mesma coisa, a condenação precisará vir de todo o espectro ideológico.

Antes de termos nossos rótulos e nossas causas, temos um país —democrátic­o, porém desigual, republican­o, porém patrimonia­lista— para defender e para mudar.

Precisamos urgentemen­te recuperar aquelas premissas básicas que permitem que a gente jogue o jogo da política para vencer, mas sabendo que, se perdermos, algumas garantias e salvaguard­as permanecer­ão intactas porque foram pactuadas por todo mundo. E elas são mais importante­s do que qualquer resultado.

Princípios são as chatices que a gente se força a seguir porque queremos que os inimigos também as sigam

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil