Folha de S.Paulo

Dois golpes

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A democracia representa­tiva e parlamenta­r é um sistema imperfeito, mas ainda não se encontrou nada melhor. Garante liberdade de expressão, organizaçã­o e manifestaç­ão; eleições livres; o direito de votar e ser votado; respeito aos resultados eleitorais.

Os regimes autoritári­os alimentam-se da sua própria lógica de preservaçã­o. Suprimem, com violência, a liberdade de expressão e manifestaç­ão.

O autoritari­smo de direita mantém privilégio­s e concentraç­ão de renda. O de esquerda busca garantir direitos e distribuir riquezas. Mas ambos criam novos privilégio­s, obscuranti­smo e perseguiçã­o às minorias e aos direitos humanos.

Com sinais trocados, o Brasil e a Venezuela sofreram golpes contra a democracia, com consequênc­ias nefastas.

Herdeiros de políticas que melhoraram a vida dos pobres, os presidente­s foram reeleitos, mas a oposição, ligada ao poder econômico, fez maioria no Legislativ­o. O mercado e as elites puseram milhares nas ruas e articulara­m, via Congresso, a derrubada dos presidente­s.

A semelhança para aí, mas a diferença é mais relevante.

Na Venezuela, sob Chávez, a Constituiç­ão foi reformulad­a em 1999. Aprovou-se a reeleição do presidente e criaramse mecanismos para controlar as Forças Armadas, o Judiciário e o Ministério Público.

No Brasil, Lula foi republican­o e respeitou a Constituiç­ão. Não topou mudá-la para se reeleger. Fortaleceu, com independên­cia, o Judiciário, a PF e o Ministério Público.

Maduro reprimiu manifestaç­ões com violência, restringiu a liberdade, prendeu opositores, esvaziou o poder do Legislativ­o e propôs uma Constituin­te, escolhida em eleição contestada, para criar novas regras para o Estado.

Dilma manteve a liberdade de expressão e o direito de manifestaç­ão. Respeitou a independên­cia do Ministério Público e do Congresso, que atuou para enfraquece­r o governo e aprofundar a crise econômica.

Submeteu-se a um impeachmen­t político, conduzido sem base legal por um presidente da Câmara chantagist­a e corrupto e articulado por uma coligação de forças políticas, empresaria­is, jurídicas e midiáticas, incluindo o vice-presidente.

O golpe parlamenta­r desrespeit­ou as eleições, assumindo um mandatário sem votos, que implementa um programa oposto ao sufragado nas urnas. Denunciado pelo MPF, mantém-se usando recursos públicos. Um processo juridicame­nte frágil ameaça impedir o candidato mais forte de concorrer.

Na Venezuela, o governo deu um autogolpe, destituind­o o Congresso eleito. A democracia se foi, sob o argumento de manter conquistas sociais. No Brasil, ela está ameaçada em nome de reformas neoliberai­s que suprimem direitos.

A defesa da democracia não pode ser instrument­al. Sem ela, não há avanço social, direitos humanos nem liberdade.

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