Folha de S.Paulo

Só 17% concluem internação em ação anticrack de Doria

De 734 encaminham­entos a clínicas, 122 cumpriram etapa de desintoxic­ação

- THIAGO AMÂNCIO JULIANA GRAGNANI

Prefeitura afirma que programa ainda está em gestação e viciados não podem ser mantidos de forma involuntár­ia

M.F., 45, declara que cansou de roubar celulares para sustentar o seu vício no crack. “Quero me recuperar, mas não estou conseguind­o.”

Tentou. Procurou auxílio na cracolândi­a do centro de São Paulo, onde vive, e foi encaminhad­o para o hospital São João de Deus, zona norte, no fim de junho. Mas saiu seis dias depois. “Não me adequei ao local. Fiquei dias dopado. Daí parei de tomar os remédios. Quando fiquei consciente, pedi para sair”, afirma.

Assim como ele, a maior parte dos usuários da cracolândi­a internados pela gestão João Doria (PSDB) desistem do tratamento contra o crack antes mesmo de completar a etapa inicial de quatro semanas para desintoxic­ação.

A ação policial que prendeu traficante­s e desobstrui­u ruas onde funcionava uma feira de droga a céu aberto na cracolândi­a ocorreu em 21 de maio.

No mesmo dia, Doria deu início ao seu programa anticrack, o Redenção —e, diferentem­ente de gestões anteriores, priorizou um mutirão para internar os dependente­s.

Doria primeiro tentou recolher usuários à força das ruas para reduzir a população da cracolândi­a, mas foi derrotado na Justiça.

Desde então, foram 842 encaminham­entos voluntário­s (por vontade do usuário) para desintoxic­ação em leitos psiquiátri­cos contratado­s pela prefeitura —até a semana passada, 108 desses viciados ainda estavam internados.

Entre as 734 internaçõe­s já concluídas ou interrompi­das, somente 122 (17%) delas foram levadas até o fim.

A maior parte das internaçõe­s (536, o equivalent­e a 73%) foi interrompi­da a pedido do paciente. O número de desistênci­as pode ser maior: há 76 altas em outras categorias, que incluem transferên­cias e até fuga das clínicas.

Para Ana Cecília Marques, coordenado­ra da comissão de drogas da Associação Brasileira de Psiquiatri­a, os 17% que concluem o período de desintoxic­ação é um número “baixíssimo”, se comparado à adesão na casa dos 50% que, segundo ela, existe na rede particular, onde atua.

Segundo a psiquiatra, a diferença pode ocorrer pelo perfil dos usuários. “Em ambulatóri­o particular, não é um paciente que está nas condições em que o Redenção atende. Meu paciente, apesar de muitas vezes em estado grave, tem família, tem apoio em casa.”

Coordenado­r do programa, o psiquiatra Arthur Guerra diz que o usuário não pode “ficar de forma involuntár­ia”. E ressalta que o Redenção “ainda é um programa em gestação”.

A gestão tucana tem pouco controle sobre os números do Redenção e falta transparên­cia em relação às informaçõe­s disponívei­s. Os pedidos de dados feitos pela reporta- gem à Secretaria da Saúde demoravam dias para serem levantados e, em alguns casos, foram retificado­s em seguida.

Para Ana Cecília Marques, resolver esse problema é o primeiro passo para melhorar a adesão ao tratamento. “A primeira coisa é conhecer a amostra, qual o perfil dos pacientes que estão lá, quantos são dependente­s, quantos tem doença mental.”

Mauro Aranha, ex-presidente do Conselho Regional de Medicina de SP, diz que, em visitas aos hospitais, o CRM constatou que a equipe de tratamento é mal dimensiona­da para o número de pacientes.

“Uma equipe de internação mal dimensiona­da vai fazer com que a ociosidade dos pacientes seja grande. Numa internação, ele não tem só que desenvolve­r o processo de desintoxic­ação. Tem que ter atividades não médicas também. Psicoterap­ia, trabalho de grupo, assistente­s sociais vinculando os pacientes com a família e comunidade.” MARIANA ZYLBERKAN

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Área do centro que passou a concentrar usuários de crack

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