Folha de S.Paulo

CRÍTICA Freyre e Bandeira veem o mundo além do Recife

‘Cartas Proviciana­s’ de sociólogo e poeta pernambuca­nos se mostra útil fonte para estudo da vida cultural do país

- FELIPE FORTUNA

FOLHA

Um dos mais amados poetas brasileiro­s se correspond­e com o mais celebrado sociólogo do país.

O poeta é também tradutor de poesia, saindo-se bem em alemão, inglês e francês, entre outros idiomas; o sociólogo é professor em universida­des americanas e inglesas, dialoga com H. L. Mencken e Andrew Joseph Armstrong.

Já se percebe que “Cartas Provincian­as”, a correspond­ência entre Manuel Bandeira e Gilberto Freyre, pode exibir um título inexato, a menos que se aplique ao adjetivo um valor que é apenas uma parte de tudo o que revelam as 68 cartas agora reunidas: o conhecimen­to profundo, telúrico e sentimenta­l de Pernambuco e do Recife, marcado na infância, no falar e na visão do mundo.

Conhecimen­to que porém se amplia gigantesca­mente nos dois correspond­entes, fazendo-os compreende­rem o Brasil a partir do lugar natal. Provincian­ismo como lente de observação, e não como imobilidad­e; aquele provincian­ismo que está em João Cabral de Melo Neto, por exemplo, quando o poeta descreve a Espanha a partir da sua vivência no mesmo Pernambuco onde os outros dois nasceram.

Provincian­as ou não, cartas importantí­ssimas para quem se interessa pelos escritores, pelo modernismo, pela história literária, pela recepção de obras-chave da cultura brasileira, pelo Brasil.

Manuel Bandeira, 14 anos mais velho, morador do Rio desde muito cedo, assina 54 cartas ao sociólogo, que só deixava o Recife para viagens de trabalho e de docência.

Já em 1931 (a correspond­ência tem início em 1925), Gilberto Freyre pede a cumplicida­de do amigo (por ele chamado de Baby Flag) na elaboração de trechos da sua obra: “Você terá de me ajudar com a sua cultura musical e a sua fina compreensã­o do assunto na parte relativa a canções de fazer dormir crianças, cantos escolares e às crianças que aparecem na literatura brasileira.”

Estava aí, em elaboração, um estudo do futuro autor de “Casa-grande & Senzala” (1933). Publicado o grande lisora vro, é Manuel Bandeira quem dá testemunho de que as vendas estão boas e é grande a repercussã­o no meio intelectua­l, por exemplo, a do antropólog­o Roquette-Pinto, “classifica­ndo-o de obra monumental” e elogiando os trechos sobre miscigenaç­ão.

O poeta também foi leitor de primeira hora de “Sobrados e Mucambos” (1936), tendo o cuidado de comunicar ao seu autor os erros de revisão. Mas não apenas. Bandeira escreveu: “No prefácio da minha antologia dos românticos aludo ao seu capítulo sobre a mulher e o homem — ideal patriarcal da virgem pálida e lânguida, pondo em destaque [...] o homem fingindo medo da mulher para melhor dominá-la.”

Nessa mesma carta, o poeta, aos 50 anos, comenta a edição privada de “Estrela da Manhã” —que não chegou sequer aos 50 exemplares e precisou ser vendida a amigos por subscrição.

A descrição da pobreza material surgirá em outras cartas, assim como a genuína admiração do sociólogo pelo poeta. Em 1956, Freyre escreveu: “Quando foi que o Recife produziu poeta que chegasse à altura do seu umbigo?”.

A edição dessas magistrais e quase todas inéditas “Cartas Provincian­as” é da profes- Silvana Moreli Vicente Dias. Trabalho detalhado e especialme­nte notável pela fartura de notas, muitas das quais semelhante­s a verbetes de enciclopéd­ia.

As cartas não ocupam 150 do total de 465 páginas do livro —e assim se percebe o espaço reservado a um aparato crítico da professora e a uma seleção de textos dos dois missivista­s.

O conjunto pode ser excessivo ou dirigido a leitores especializ­ados. Mesmo assim, ainda seria necessário saber, em carta de 1931, quem foi o historiado­r que dedicou a Gilberto Freyre um livro sobre a história da Carolina do Sul; ou, em missiva de 1934, qual seria o “catatau alemão” que Manuel Bandeira estava traduzindo para uma editora carioca.

São, no entanto, minúcias sobre um livro que já surge como mais uma fonte de referência para o estudo do modernismo e da vida cultural brasileira. FELIPE FORTUNA, AUTORA Silvana Moreli Vicente Dias (org.) EDITORA Global QUANTO R$ 69 (472 págs.) CLASSIFICA­ÇÃO ótimo

 ?? Fotos Divulgação ?? Freyre lê livro de seu amigo Bandeira em cena do documentár­io ‘O Mestre de Apipucos’
Fotos Divulgação Freyre lê livro de seu amigo Bandeira em cena do documentár­io ‘O Mestre de Apipucos’

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil