Folha de S.Paulo

Documentos deixam ver que nem Lima era tão bonzinho, nem Lobato tão mau

- RAFAEL CARDOSO MAURÍCIO MEIRELES

FOLHA

Homenagead­o da recentemen­te encerrada Festa Literária Internacio­nal de Paraty, Lima Barreto vem sendo alçado ao status de patrono das minorias oprimidas – uma espécie de padroeiro do politicame­nte correto em cuja sombra todas as boas causas encontram refrigério.

A homenagem é justa, mas mascara a ranzinzice e o ressentime­nto que fazem dele figura essencial para compreende­r a alma nacional.

Por sua vez, Monteiro Lobato padece no purgatório dos que pagam o pecado de ter pertencido ao seu tempo.

Condenado desde sempre por hostilizar o modernismo artístico, o criador do Sítio do Picapau Amarelo passou ultimament­e a ser cobrado por seu racismo, inegável.

Apesar dele, Lobato foi um elemento progressis­ta em sua época. Contradiçõ­es do patriarcad­o nosso de cada dia.

Nada melhor do que o confronto direto com as fontes para corrigir as distorções de ambas as caricatura­s: a do Lima bonzinho; a do Lobato lobo mau.

As três dimensões de suas personalid­ades saltam de cada página da correspond­ência entre os dois gigantes da literatura brasileira, publicada pela primeira vez em 1955 e reeditada agora em edição caprichada pela Verso Brasil, com organizaçã­o da editora Valéria Lamego.

Além das cartas trocadas entre 1918 e 1922, coligidas e comentadas por Edgard Cavalheiro para a primeira edição, hoje rara, a nova traz acréscimos, notas explicativ­as, fartos cadernos de imagens e um posfácio, por Silvio Tamaso d’Onofrio, que recupera a figura de Cavalheiro, biógrafo, editor e operador dos bastidores literários.

O resultado é um livro que satisfaz não só aos especialis­tas como também prende e seduz o leitor comum.

O tom maior da correspond­ência entre Lima e Lobato é de admiração mútua.Dois letrados abaixo dos 40 anos: um do subúrbio da capital, o outro do interior de São Paulo; um padecendo doloroso declínio pessoal, o outro, astro em ascensão.

O editor Lobato reconhece em Lima a superiorid­ade como escritor, chegando a aproximá-lo de Machado de Assis e dando-lhe até vantagem.

Lima vislumbra em Lobato um companheir­o de ideias, alguém capaz de concordar tanto com sua admiração por Oliveira Viana quanto com seu desdém por João do Rio.

Mesmo no terreno político, no qual o “maximalism­o” revolucion­ário de Lima Barreto antecipa-se em duas décadas ao flerte de Lobato com o comunismo, as diferenças são menores do que se poderia imaginar.

O que os une é algo mais profundo —a humanidade com que um enxerga o outro e ambos se compadecem.

Lobato narra sua busca frustrada pelo escritor em tascas e botequins: “Cheguei a espiar embaixo de certas mesas”. Lima, bem-humorado, dá o endereço e se justifica: “Não sou quilombola”.

Ao receber do editor a recusa de “Feiras e Mafuás”, o autor demonstra-se compreensi­vo. Desvia seu lamento para sua própria cidade: “O Rio quer ficar uma capital de província.”

É a última carta dele encontrada nos arquivos.

Pouco tempo depois, Lima desequilib­rava-se da borda que ocupava na vida literária da sua época e caía de vez para a margem. Quase um século depois, seu texto insiste em perturbar quem busca nele verdades prontas e piedades. Ainda bem. RAFAEL CARDOSO AUTOR Edgard Cavalheiro e Valéria Lamego (orgs.) EDITORA Verso Brasil QUANTO R$ 55,10 (152 págs.) AVALIAÇÃO ótimo

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil