Folha de S.Paulo

UM JEITO DE APRENDER E ENSINAR

Após enfrentar preconceit­o e reprovaçõe­s, surdo vira docente na rede municipal, defenderá doutorado na USP e diz se sentir ‘um estrangeir­o dentro do próprio país’

- PAULO SALDAÑA

DE SÃO PAULO

A minha comunicaçã­o era gritando até os 10 anos. Eu não falava, e a comunicaçã­o era com sinais. Nasci surdo.

Pegava uma colher de pau e batia na minha mãe quando queria alguma coisa. O surdo tem um mundo próprio que os ouvintes não entendem. O primeiro idioma oficial do surdo é os sinais. E o segundo é a língua escrita.

O português nunca é um sucesso para o surdo. É como um brasileiro na Inglaterra para aprender o inglês.

Então o surdo se sente um estrangeir­o dentro do próprio país. No meu caso, só aprendi o português aos 22 anos.

Nasci na periferia do Rio, em Campo Grande, a duas horas do centro da cidade. Morávamos em uma comunidade chamada Vilar Carioca. Minha mãe é surda também. Era separada do meu pai, que tinha esquizofre­nia. Por isso não convivi muito com ele, que faleceu há duas semanas.

Tive pouco acesso à educação. Sempre estudei no ensino público, e não havia inclusão. O convívio não era muito bom na escola, eu ficava isolado. Até o ensino médio era aquela coisa das escolas que vão empurrando o aluno com algum tipo de deficiênci­a.

Meus colegas faziam brincadeir­as por causa da minha voz. Eu não tinha a voz que eu tenho hoje, então me colocavam apelidos. Não era tranquilo, eu não conseguia falar as palavras, e fui me re- po fui dar aula de história em um polo de um curso superior à distância e em um colégio de ouvintes no Rio.

Os alunos nem acreditava­m que eu tinha deficiênci­a. Como sempre tive de lutar, tento passar essa garra para os alunos. Todo mundo me pergunta como consigo ver a bagunça dos alunos. Eu coloco um espelho para ver o que está acontecend­o atrás. Os alunos ficam revoltados!

No Rio, havia sido reprovado em cinco processos seletivos para o doutorado. Não conseguia passar pela dificuldad­e com o português, não tinha adaptação da prova, não conseguia me expressar na entrevista, não tinha cotas.

Eu não acreditava em chegar à USP. Até hoje eu não acredito. Sou provavelme­nte o primeiro surdo na USP a defender o doutorado. Entrei em 2012 e quero defender minha tese, provavelme­nte em março, em português e Libras.

No doutorado tive a chance de viajar para o exterior. Fui pesquisar arquivos na Inglaterra. Em Portugal, fui para a Universida­de de Lisboa. Aquela carta da revista me fez trabalhar com o período colonial. Meu mestrado foi sobre a colonizaçã­o do Brasil a partir de uma instituiçã­o específica, a alfândega. No doutorado dou continuida­de a isso. PRECONCEIT­O Mas aqui também sofri muito preconceit­o nas entrevista­s em colégios particular­es de São Paulo. Foram mais de dez colégios, passava em todas as etapas, quando eu falava que era deficiente auditivo, era cortado. Também fui recusado em uma faculdade. Sentia uma impotência. Pensei em desistir já que não era aceito.

No concurso da prefeitura passei em 2º lugar [entre candidatos com deficiênci­a]. Sou um dos poucos professore­s surdos na rede municipal.

Como ainda não fizeram a convocação, entrei em abril como contratado na escola bilíngue para surdos Neusa Bassetto, na Mooca. Sou o único professor surdo. Há tutores de Libras, mas não professore­s. Nem a equipe acreditava que um surdo poderia ser professor, nem as famílias.

As aulas são sempre em Libras, mas, como sou oralizado, tem alguns surdos que estão querendo falar. E alguns que querem ser professore­s.

Participo do Instituto Escuta, voltado para crianças surdas filhas de pais ouvintes. Quando falo com mães, elas me perguntam ‘Quando você começou a falar?’. Eu mesmo nem sei, digo, porque até hoje estou aprendendo.

Todo dia eu tenho de fazer horas de exercícios, vou na fonoaudiol­ogia. Às vezes eu interrompo e é como se eu estivesse parando de falar, voltam todas as dificuldad­es.

É engraçado que as pessoas viajam para outros países e querem aprender outro idioma. Dão um jeito de aprender o mínimo, a dar bom dia em outra língua. E quem sabe dar bom dia para o surdo?

Eu tinha uma baixa autoestima por questão da surdez, mas aí fui ganhando independên­cia. E tenho certeza que a surdez me dá até um charme.

colégios particular­es [de São Paulo]. Foram mais de dez colégios, passava em todas as etapas, quando eu falava que era deficiente auditivo, era cortado. Também fui recusado em uma faculdade. Sentia uma impotência. Pensei em desistir já que não era aceito

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