Folha de S.Paulo

AMOR BRUTO

Inspirado em poema de Walt Whitman, cineasta Marcelo Caetano explora a sensualida­de e se esquiva de estereótip­os em ‘Corpo Elétrico’, retrato de jovem gay no ambiente fabril paulistano

- SEGUNDA-FEIRA, 14 DE AGOSTO DE 2017 GUILHERME GENESTRETI

No poema “Eu Canto o Corpo Elétrico”, o americano Walt Whitman exalta os quadris, maxilares, costas, olhos e barbas de barqueiros, nadadores, fazendeiro­s e de escravos bronzeados pelo sol.

O diretor mineiro Marcelo Caetano também se abre para a potência de torsos, nucas, peitos e joelhos —no caso dele, para o da gente que labuta em uma confecção do Bom Retiro no drama “Corpo Elétrico”. O filme, que circulou por festivais como o de Roterdã e de Guadalajar­a, estreia nesta quinta (17) no circuito.

“Em São Paulo, o trabalho reverbera fora dele, nas horas vagas. A ideia do corpo elétrico é como se libertar disso, como se reencontra­r com o próprio corpo”, diz o diretor de 34 anos, estreante em longas.

O universo do trabalho é um dos fios da obra, centrada em Elias (Kelner Macêdo), estilista paraibano que orbita entre o mundo dos seus patrões na confecção e o dos operários do chão da fábrica.

Elias também deita seu corpo na cama de vários homens, alguns encontrado­s a esmo, em relações fugidias ou não, mas que nunca beiram a idealizaçã­o de um filme convencion­al sobre gays.

“O amor romântico é opressivo, não só pela hegemonia cultural que exerce em filmes, livros e músicas, como por impedir a fluidez do desejo”, diz Caetano, que descreve o protagonis­ta como uma espécie de Sherazade: aproxima-se das pessoas pelas histórias que conta ao pé do ouvido, entre as transas.

“A cama é o lugar do desejo, mas também do sonho. O sexo não é mais importante do que a conversinh­a ou o cigarro que vem depois”, diz. SEXO SEM TABU Tirar o sexo de seu pedestal foi algo que o diretor quis levar à narrativa a partir de sua experiênci­a nos sets dos longas de outros diretores.

“Existe tabu na hora de gravar, com os atores preocupado­s, como se houvesse uma hierarquia”, conta Caetano, que afirma ter dessacrali­zado esse tipo de cena desde sua passagem como assistente de direção em “Tatugem” (2013), de Hilton Lacerda —longa com alta voltagem sexual.

Formado em ciências sociais, Caetano migrou para o audiovisua­l em 2005, trabalhand­o na produtora do conterrâne­o Kiko Goifman ( “FilmeFobia”). Foram curtas como “Bailão” (2009), que correram festivais, que o fizeram estreitar parcerias com os pernambuca­nos Kleber Mendonça Filho e Gabriel Mascaro e com a paulistana Anna Muylaert.

Para Kleber, fez a produção de elenco de “Aquarius” (2016) e sugeriu o nome de Sonia Braga para a protagonis­ta. Durante os testes com os atores, Caetano topou com o paraibano Kelner, 22, que não levou o papel do sobrinho da personagem de Sonia, mas desembarco­u como o protagonis­ta de “Corpo Elétrico”.

O ator lembra das primeiras provas a que foi submetido em São Paulo assim que ganhou o papel. “Marcelo me pedia para andar pela cidade com um mapa e gravar minhas impressões”, diz Kelner.

Suas andanças ecoam a de seu personagem, que zanza entre o mundo cinza dos operários da confecção e o universo de glitter da travesti Marcia Pantera e da funkeira transexual Linn da Quebrada, que também atuam no filme.

No ambiente fabril, a homossexua­lidade de Elias não choca os colegas. “Acredito numa solidaried­ade outsider entre eles”, diz Caetano, para quem o cinema brasileiro acostumou o público a ver a classe operária como categoria estanque ou que o “pobre é conservado­r”. Não foi o que o diretor viu nos seis meses em que fez pesquisa de campo nas confecções paulistas.

As faíscas de confronto na trama, quando surgem, têm tintas de conflito de classes. “Ela é pano de fundo, mas não há hierarquia entre ela ou o desejo e o corpo como temas.”

O estudo estritamen­te social, recorrente na produção brasileira, é outra das categorias que “Corpo Elétrico” derruba, tal como as convenções do que seria um cinema gay.

O filme, diz o diretor, parte de Whitman, o poeta, e não de Bourdieu, o sociólogo. “Não quero cumprir agendas, mas os corpos são políticos em si. Querem dançar a cidade.”

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Kelner Macêdo em cena de ‘Corpo Elétrico’
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Karime Xavier/Folhapress O diretor Marcelo Caetano, em São Paulo

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