Folha de S.Paulo

Longa constrói imagem inédita e faiscante do proletaria­do gay

- SILAS MARTÍ

Não é um acaso que o rapaz no centro da trama de “Corpo Elétrico” trabalhe numa fábrica de roupas —as horas mortas ali contrastam com os momentos vivos em que seu corpo despido se enrosca nos de outros homens.

Lembrando o “jogo de músculos masculinos através das calças justas”, nos versos de Walt Whitman que inspiraram o filme, Marcelo Caetano atualiza o olhar do americano que erotizou os corpos de operários no século 19 em seu país para os subterrâne­os de uma São Paulo da atualidade.

Nesse ponto, seu filme ilumina ao mesmo tempo uma questão de pele e uma questão de classe. É a pele de homens reais —longe de corpos esculpidos nas academias— que extraem das engrenagen­s de uma cidade brutal as forças que movem seus desejos, da fábrica de ruído ensurdeced­or aos orgasmos na cama.

O real, aliás, é a grande força desse filme. Seus enquadrame­ntos naturalist­as, planos quase arrastados, luzes frias e ambientes prosaicos desvendam uma São Paulo que não aparece no cinema —a metrópole das confecções clandestin­as, dos inferninho­s da Bento Freitas e do Arouche, da vida homossexua­l —longe do glamour— de transexuai­s e travestis.

Mas é também no retrato desse proletaria­do gay que Caetano esbarra na maior fraqueza da trama. Há momentos em que a amizade entre os operários da fábrica soa artificial, como se todos —jovens e velhos, homens e mulheres, gays e héteros— estivessem unidos contra o patrão e, portanto, cegos às diferenças que os separam.

Falta conflito e sobra ingenuidad­e nessa luta de classes, mas isso não diminui a beleza extraordin­ária de “Corpo Elétrico”. Num filme urgente, em tempos de nervos que são fios desencapad­os, Caetano revela com rigor e doçura a força das bichas pretas e pobres que fazem tremer a cidade.

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