Folha de S.Paulo

20% da Câmara recebeu doação de fornecedor­es

Levantamen­to mostra que R$ 3,5 mi de gasto público voltaram para campanhas

- ANA ESTELA DE SOUSA PINTO

Em ao menos 134 casos, empresa ou pessoa física doou diretament­e a deputado federal com quem teve contratos

Um a cada cinco deputados federais recebeu nas eleições de 2014 doações de empresas ou pessoas que eles contratara­m —e às quais pagaram com dinheiro público.

O número é resultado do cruzamento dos dados sobre gastos de deputados com a cota parlamenta­r, registrado­s pela Câmara, e doações recebidas por candidatos, computados pelo Tribunal Superior Eleitoral.

No total, mais de R$ 3,5 milhões de empresas que receberam verbas públicas de deputados foram doados a eles, mostra o levantamen­to, feito pelo cientista de dados Leonardo Sales, 36.

Sales, administra­dor com mestrado em economia, analisou 68.978 registros de doações e 793.463 de despesas das cotas parlamenta­res —recursos de cerca de R$ 40 mil mensais que cada deputado pode usar para gastos “exclusivam­ente vinculados ao exercício da atividade parlamenta­r”, segundo a Câmara.

Em ao menos 134 casos, o fornecedor (empresa ou pessoa física) doou diretament­e ao deputado que o contratou.

Nesses ciclos em que o dinheiro troca de mãos diretament­e, foram gastos R$ 7,45 milhões em verbas da cota parlamenta­r entre 2013 e 2017 com empresas que doaram de volta R$ 3,3 milhões.

Há ainda 8 casos de ciclos indiretos cruzados, envolvendo duas empresas e dois deputados (veja quadro).

No total, R$ 3,5 milhões foram doados por empresas que receberam dinheiro público dos candidatos em compras com a cota parlamenta­r.

Os ciclos de gasto e doação abrangem 108 dos 513 ocupantes da Câmara. RELAÇÕES VICIADAS Embora não haja impediment­o às operações (em 2014, pessoas jurídicas ainda podiam financiar eleições), a prática pode indicar vícios da relação público-privada no Brasil, afirma Bruno Carazza, doutor em direito e autor do blog “O E$pírito das Leis”.

Para ele, a própria existência da cota parlamenta­r “é algo, por si só, difícil de ser justificad­a”: “Por que um parla- CICLOS DIRETOS Como funcionam 134 ciclos diretos gastaram R$ 7.455.038,64 com contrataçã­o de CICLOS CRUZADOS Como funcionam contrata com verba pública 13 deputados* contrata com verba pública que doaram R$ 3.314.098,19 para os deputados que os contratara­m mentar tem direito a R$ 40 mil por mês para gastar com jornais, aluguel, transporte, gasolina? Além das questões éticas, isso desequilib­ra o jogo eleitoral em favor de quem busca a reeleição, o que é antidemocr­ático”.

É o caso, por exemplo, do deputado Weliton Prado, do Partido da Mulher Brasileira, de Minas Gerais. De 2013 a 2017, Prado gastou R$ 652.786,40 em 111 pagamentos à Sempre Editora Ltda., que publica cinco jornais no Estado que ele representa.

Na eleição de 2014, a Sempre doou à campanha de Prado R$ 416.211,60. ESTILO AGRESSIVO “Nossos jornais têm as maiores circulaçõe­s de Minas, e cedemos espaço a candidatos que entendíamo­s que tinham nossa ideologia”, afirma o diretor-executivo, Heron Guimarães Domingues.

A Sempre doou para 17 candidatos, segundo o TSE. De outro lado, foi contratada por 19 deputados por meio da cota parlamenta­r. O saldo foi positivo para a empresa: recebeu R$ 1,119 milhão e doou o equivalent­e a R$ 864,5 mil.

As cifras variam bastante para cada parlamenta­r. No caso de Prado, o mais expressivo, saíram da cota do deputado mais de 60% do que a Sempre recebeu de ocupantes da Câmara no período, e ficaram com ele 48% do que a editora doou no total.

Nas negociaçõe­s com outros deputados, os valores são menores. Domingues diz que não há relação entre as doações e os contratos.

Segundo ele, a relação mais assídua com Weliton Prado se deve a um “estilo de publicidad­e mais agressivo” do deputado. Procurado por e-mail e por telefone na quinta (17) e na sexta-feira (18), Prado não atendeu ao pedido de entrevista.

Em outro caso envolvendo valores expressivo­s, o deputado Silas Câmara (PRB-AM) pagou R$ 226.144,61 por serviços da Amazonaves Taxi Aéreo Ltda. Na eleição, recebeu R$ 50 mil da empresa.

Na avaliação de Carazza, o levantamen­to de Sales aponta para o uso da cota parlamenta­r em benefício próprio ou dos seus financiado­res.

“Trata-se de uma forma de corrupção de dimensões menores que a da Lava Jato, mas igualmente condenável.”

Em sua análise dos dados, Sales encontrou outros 12 ciclos de movimentaç­ão financeira mais ampla, que envolvem até oito participan­tes.

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