Folha de S.Paulo

O CÓDIGO CABRAL

Garranchos e anotações confusas de operador do ex-governador do Rio fornecem pistas para investigad­ores

- ITALO NOGUEIRA

Já fazia mais de quatro horas que a equipe RJ-07 da Operação Calicute, em 17 de novembro, vasculhava o apartament­o de Luiz Carlos Bezerra em Botafogo, zona sul do Rio. No imóvel de 73 metros quadrados, os seis investigad­ores já tinham apreendido oito celulares, dois computador­es, notas de reais, dólar, euro e libra que somavam R$ 120 mil, e alguns documentos.

Bezerra tentou demonstrar desdém quando duas malas no canto da sala chamaram a atenção dos agentes. Quase de saída, eles decidiram inspeciona­r as bagagens. Sentados no chão por mais duas horas, encontrara­m nelas, prestes a ir para o lixo, muito papel rasgado e a maior parte das dez cadernetas que se tornaram uma espécie de “roteiro” das investigaç­ões contra Sérgio Cabral (PMDB).

Bezerra é apontado como o responsáve­l por recolher e distribuir dinheiro vivo do suposto esquema de corrupção comandado pelo ex-governador, também preso naquele dia.

Ele mantinha uma contabilid­ade manuscrita da movimentaç­ão diária dos recursos em caderninho­s do Corpo de Bombeiros, dos museus do Vaticano e do Louvre, entre outros. A reprodução de todo o material consumiu quase mil páginas (muitas com mais de uma folha).

Os remetentes e destinatár­ios dos valores eram identifica­dos por apelidos. Os garranchos por vezes ilegíveis de Bezerra se tornaram, na avaliação dos procurador­es da Lava Jato no Rio, uma das provas mais contundent­es contra Cabral.

Foram apreendido­s papéis que se referem ao intervalo de outubro de 2013 a 16 de novembro de 2016, véspera da operação que o prendeu. Análise preliminar da Polícia Federal do material indica o recolhimen­to de R$ 37,6 milhões no período.

O manuscrito ganhou importânci­a quando o ex-assessor do peemedebis­ta “traduziu” diversos apelidos em 4 de maio num depoimento de uma hora e meia ao juiz Marcelo Bretas. Uma semana depois, ampliou o leque de envolvidos para o Ministério Público Federal.

“A contabilid­ade do sr. Bezerra é digna de uma psiquiatri­a. É um bezerrês. É feita de forma completame­nte alucinada. Só ele pode explicar”, disse Cabral em depoimento na Justiça Federal.

“É um rapaz que conheci quando tinha dez anos de idade. Foi criado na minha casa e levei para trabalhar comigo muito cedo. Lamento as distorções que foram feitas naquela contabilid­ade maluca”, disse o ex-governador, que nega as informaçõe­s confirmada­s por Bezerra.

Amigo de infância do exgovernad­or, ele começou a trabalhar com o peemedebis­ta em 1988, na Turisrio (companhia estadual). Foi padrinho do primeiro casamento de Cabral, que é, por sua vez, padrinho de seu filho.

Desde então, atuou como assessor do amigo no Rio. Ele contou a Bretas que assumiu a função de transporte de dinheiro na campanha de 2010. Recebia pelo serviço cerca de R$ 30 mil por mês em dinheiro vivo, “lavados” por meio de contratos fictícios de sua empresa com um curso de inglês e um boliche.

“Eu ia buscar e levar para onde era determinad­o. Estava numa zona de conforto. Ganhava um salário muito razoável. Nunca me foi dito nada, nem nunca perguntei. Não sou nenhum imbecil de achar que a pessoa estava dando de graça. Mas nunca soube [de acordo de propina]”, afirmou ele.

Em busca de uma pena mais branda por meio da confissão, Bezerra detalhou os repasses mesmo sem firmar delação premiada. Sem a proteção de um acordo com o MPF, os depoimento­s que prestou não só confirmara­m acusações já feitas como geraram provas que o tornaram réu em mais dois processos, além de outras investigaç­ões em curso. Ele permaneceu calado na última audiência.

Responsáve­l por uma contabilid­ade confusa, Bezerra também teve uma passagem atribulada na prisão. Uma semana depois de ser preso, foi solto por engano e chegou a dormir um dia em casa. Em janeiro, pediu para ser transferid­o de Bangu 10 após ameaça de rebelião na cadeia. Atualmente, está na cadeia pública José Frederico Marques, em Benfica, junto com Cabral.

Durante o depoimento, Bretas chegou a dizer a Bezerra que ele “poderia ser mais organizado” na contabilid­ade do esquema.

“Nunca fui organizado, nem para prestar contas”, respondeu Bezerra. “Não vou dizer que na próxima [melhore], porque espero que...”, disse o magistrado. “Não vai rolar”, completou o acusado, réu em dez ações penais.

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