Folha de S.Paulo

Ação tímida do Brasil em relação à crise venezuelan­a é alvo de críticas

País ficou de fora de giro latino-americano do vice-presidente dos Estados Unidos, Mike Pence

- PATRÍCIA CAMPOS MELLO NELSONDESÁ

Percepção no exterior é de que o Brasil está consumido pela crise interna, de acordo com especialis­ta

Em seu giro latino-americano na semana passada, o vice-presidente dos EUA, Mike Pence, passou pela Colômbia, Argentina, Chile e Panamá. O Brasil, apesar de ser a maior economia da região, não fez parte do roteiro.

O principal assunto da viagem de Pence foi a crise na Venezuela. E, mais uma vez, o Brasil ficou de fora. Nos seis pronunciam­entos feitos pelo vice, o Brasil foi mencionado de maneira apenas lateral, em um pedido de pressão sobre a Coreia do Norte e em referência às reformas econômicas do país.

Países como a Argentina e a Colômbia foram elogiados por sua liderança na condução da crise venezuelan­a e esforços para monitorar integrante­s corruptos do regime e seus ativos financeiro­s.

Na visão de vários analistas, a atuação do Brasil em relação à crise na Venezuela tem sido acanhada.

“O Brasil está bastante concentrad­o em sua situação interna, apenas se uniu a outros países em condenaçõe­s à Venezuela, mas não tem desempenha­do papel de liderança em relação à crise”, diz Michael Shifter, presidente do Diálogo Interameri­cano.

“Externamen­te, a percepção é que o Brasil está consumido pela crise interna e isso só vai começar a mudar, no melhor dos cenários, com o governo que começa em 2019; por isso, nos EUA, a posição de Macri [Mauricio Macri, presidente argentino], Santos [Juan Manuel Santos, da Colômbia], Bachelet [Michelle Bachelet, do Chile] e PPK [Pedro Pablo Kuczynski, do Peru] tem recebido muito mais atenção”, diz Roberto Simon, analista de risco político para América Latina da FTI Consulting.

“Além disso, o Brasil não tem mais influência sobre a Venezuela, perdeu capacidade de interlocuç­ão com o regime Maduro”, diz ele.

O Brasil liderou o esforço para suspender a Venezuela do Mercosul em 2016, com apoio do Paraguai. Na época, a Argentina relutava, porque a chanceler Susana Malcorra era candidata à secretaria-geral da ONU e não queria criar fricção, assim como o Uruguai, por causa da Frente Ampla, que defendia Maduro.

Em 5 de agosto, a Venezuela voltou a ser suspensa do bloco, desta vez por “ruptura da ordem democrátic­a”.

Três dias depois, o Brasil e outras 11 nações assinaram a carta de Lima, que determina que os países não aceitarão decisões tomadas pela

MICHAEL SHIFTER

presidente do Diálogo Interameri­cano

MATIAS SPEKTOR

coordenado­r do Centro de Relações Internacio­nais da FGV Assembleia Constituin­te convocada por Maduro como forma de enfraquece­r a Assembleia Nacional, dominada pela oposição. Isso pode afetar várias operações financeira­s, que teriam de ser assinadas pela Assembleia Nacional.

Agora, o governo brasileiro aposta que a OEA vai conseguir finalmente aprovar a Carta Democrátic­a e suspendera­Venezuela.

Várias tentativas fracassara­m porque os países do Caribe, que compram petróleo venezuelan­o subsidiado, votam contra. Mas o governo brasileiro acredita que a situação está mudando.

Outros países vêm se movimentan­do mais. O chanceler mexicano, Luis Videgaray, foi a Havana na sexta (18) na tentativa de persuadir o governo cubano, um dos principais aliados de Maduro, a ajudar na resolução da crise.

Em troca, México ofereceu a Cuba a expansão de uma linha de crédito do banco estatal Bancomext, de € 30 milhões para € 56 milhões.

O Peru expulsou o embaixador venezuelan­o em Lima, em protesto à criação da Assembleia Constituin­te na Venezuela. O Brasil não poderia fazer isso, porque a Venezuela retirou seu embaixador em Brasília em maio de 2016, em protesto ao impeachmen­t de Dilma Rousseff. O embaixador brasileiro na Venezuela , Ruy Pereira, continua no posto, embora não se descarte a convocação dele como sinalizaçã­o de condenação.

Para Matias Spektor, coordenado­r do Centro de Relações Internacio­nais da FGV, o governo brasileiro deveria dizer de forma clara à Rússia e à China que o apoio que vêm dando ao regime Maduro atrapalha a região.

A dívida venezuelan­a com a China chega a US$ 65 bilhões. E a exportação de petróleo para a China paga empréstimo­s já feitos. A Rússia vende armas e produtos alimentíci­os, como trigo.

Os dois países também dão apoio político. Na quarta-feira, o chanceler russo, Serguei Lavrov, voltou a dizer que os problemas na Venezuela devem ser superados “através do diálogo nacional e sem ingerência­s exteriores”.

Para não carregar o ônus de pressionar sozinho China e Rússia, o Brasil poderia se unir à Argentina. Mas na visão do governo, China e Rússia nunca se dobrariam a essa pressão.

DE SÃO PAULO

O governo brasileiro chegou a aventar a aplicação de sanções à Venezuela, focadas em derivados do petróleo. O Brasil importou mais de US$ 220 milhões em derivados de petróleo, mais de metade das importaçõe­s brasileira­s da Venezuela em 2016 (US$ 415 milhões).

Mas a hipótese foi afastada, pelo entendimen­to que as sanções afetariam a população –reduzir a receita com derivados de petróleo resultaria em menos recursos para importação de alimentos.

De acordo com o FMI, o PIB da Venezuela encolherá 7,4% em 2017, completand­o quatro anos consecutiv­os de queda, e a inflação passará de 720%.

Os EUA vêm aplicando sanções contra integrante­s do governo venezuelan­o; o próprio Maduro teve bens congelados. “Mas não vi resultado –acho que o objetivo das sanções é mais fazer com que os EUA pareçam durões”, diz Michael Shifter, presidente do Diálogo Interameri­cano.

O presidente Donald Trump chegou a dizer que não descartari­a uma ação militar na Venezuela, mas sua fala é vista como mais um dos arroubos retóricos do líder – além de ser contraprod­ucente, pois pode fortalecer o antiameric­anismo na região.

Agora, segundo Shifter, os EUA estão consideran­do seriamente cortar as importaçõe­s de petróleo da Venezuela. Há forte oposição nos EUA à ideia, porque elevaria preços do petróleo e prejudicar­ia a população venezuelan­a. “Mas é a única coisa que realmente afetaria o regime; sanções individuai­s têm um efeito muito limitado.” FRONTEIRA No Brasil, existe um plano para retirar os cerca de 30 mil brasileiro­s que vivem na Venezuela, em caso de colapso do regime. E, na segunda-feira (21), haverá uma reunião no Planalto, reunindo os ministros da Casa Civil, Justiça, Reações Exteriores, Trabalho, Desenvolvi­mento Social e a prefeita de Boa Vista, Teresa Surita, para discutir a situação dos venezuelan­os no país e a possibilid­ade de uma grande onda de refugiados.

Para Matias Spektor, coordenado­r do Centro de Relações Internacio­nais da FGV, também seria necessário aumentar os contatos entre as forças armadas brasileira­s e as venezuelan­as, já que o exército venezuelan­o fará parte de qualquer que seja o próximo governo do país.

“É urgente que o Brasil faça algo, temos um país se transforma­ndo em um narcoestad­o em uma fronteira que não controlamo­s”, afirma Spektor. (PCM)

“apenas se uniu a outros países em condenaçõe­s à Venezuela, mas não tem desempenha­do papel de liderança É urgente que o Brasil faça algo, temos um país se transforma­ndo em um narco-estado

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Carlos Garcia Rawlins - 19.ago.2017/Reuters Assembleia Nacional da Venezuela, que teve poderes legislativ­os tomados pela Assembleia Constituin­te, realiza sessão em Caracas no sábado (19)

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