Folha de S.Paulo

Odebrecht em Angola, fim do império

- MATHIAS DE ALENCASTRO

DIA 23 de agosto, Angola realiza sua terceira eleição geral desde o término da guerra civil em 2002. Será o primeiro pleito sem José Eduardo dos Santos, presidente do país há 38 anos. A sua saída coloca um ponto final no império da Odebrecht. Trata-se de um dos episódios mais intrigante­s da política externa das multinacio­nais brasileira­s.

Em sua delação premiada, Emílio Odebrecht remonta os primeiros contatos com o regime angolano aos anos 1980. Enquanto o governo tentava conter o avanço dos combatente­s da Unita, a sua empresa construía obras de infraestru­tura estratégic­as, ocupava minas de diamantes e até participav­a das tentativas de acordo de paz pilotadas pela ONU.

A vitória militar do governo em 2002 coincide com a decolagem da economia, alavancada pela alta do preço do barril de petróleo. Nessa altura, a Odebrecht era a maior doadora da Fundação Eduardo dos Santos, uma instituiçã­o que, de acordo com pesquisado­res, destinava-se a desviar a renda petrolífer­a do Estado para os bolsos da família do presidente angolano.

Ainda segundo a delação de Odebrecht, na virada do século, o presidente angolano investiu a empresa com duas missões estratégic­as: assumir o papel de Ministério­Paralelo das Obras Públicas e forjar uma elite econômica por via da conversão dos senhores da guerra em homens de negócios.

Durante a década seguinte, esse bizarro consórcio público-privado liderou um faraônico projeto de reconstruç­ão nacional. Uma coorte de marqueteir­os, consultore­s e aventureir­os brasileiro­s gravitava em torno da Odebrecht e contribuía para a camuflar o regime angolano em aluno modelo do continente africano.

O colapso do superciclo de commoditie­s em 2014 derrubou essa encenação grotesca. Desde então, em Angola, hospitais funcionam sem seringas, escolas abrem sem professore­s, e áreas habitacion­ais recém construída­s viraram cidades-fantasma.

O desperdíci­o de uma década de prosperida­de desencadeo­u uma revolta silenciosa da população. Pressionad­o, o vetusto presidente decidiu ceder o lugar a um quadro do seu partido, João Lourenço, a fim de preservar os interesses financeiro­s da sua família. Totalmente comprometi­da com Dos Santos, a Odebrecht parece destinada a perder o seu lugar de mestre-de-obras do governo angolano.

A ascensão e queda da Odebrecht ultrapassa o escopo da diplomacia brasileira, uma vez que, durante a sua hegemonia, a empresa era a ponte através da qual os governos brasileiro­s entravam em Angola, e não o contrário. O seu império deve ser compreendi­do como um episódio da relação entre Estado e capital privado nos dois lados do Atlântico Sul.

Afinal, é impossível ignorar o paralelo histórico entre a Odebrecht e outras companhias que, à imagem da empresa negreira setecentis­ta Companhia de Pernambuco e Paraíba e da novecentis­ta Diamantes de Angola, desenvolve­ram uma relação predatória e simbiótica com o Estado. Atualmente matéria-prima de promotores e juízes, a história da Odebrecht em Angola terminará na mesa dos cientistas políticos.

História da construtor­a no país africano terminará na mesa dos cientistas políticos

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