Folha de S.Paulo

Nova York debaixo d’água

- RONALDO LEMOS

NA MINHA opinião, o melhor livro de 2017 já foi publicado. Trata-se do calhamaço de mais de 600 páginas escrito por Kim Stanley Robinson, norte-americano que é um dos mais interessan­tes escritores contemporâ­neos. A trama do livro, chamado “2140”, desenrola-se exatos 123 anos no futuro na cidade de Nova York.

Só que com um pequeno detalhe. Por causa do aqueciment­o global, o nível do mar subiu cerca de 18 metros. Com isso, a parte sul de Manhattan (que possui elevação menor que a parte norte da cidade) ficou debaixo d’água. Robinson mostra o que aconteceu com a vida no Chelsea, no Soho ou em Wall Street depois da enchente definitiva.

A cidade transformo­u-se em uma espécie de nova Veneza. Alguns prédios ruíram. Outros estão firmes e fortes e são oásis habitados. Entre eles surge uma intrincada rede de passarelas ligando edifícios, o que permite um fluxo constante de pedestres. O trânsito também segue. Embarcaçõe­s dividem espaço com barcos individuai­s e até mesmo pessoas nadando no que antes eram ruas e agora são canais.

A genialidad­e de Robinson é mostrar que, mesmo em uma situação extrema como essa, não só a vida urbana resiste (inclusive a vida noturna) como também os vícios antigos.

A história se desenrola no momento em que um investidor cria um novo índice financeiro, baseado na medição das marés e na altura das águas planetária­s. O índice permite então dar previsibil­idade ao mercado imobiliári­o e atrair investimen­tos.

Com isso, há um novo surto de especulaçã­o imobiliári­a. Comunidade­s que resistiram por anos à inundação, literalmen­te lutando por sua sobrevivên­cia, são progressiv­amente forçadas a desocupar suas casas, convertida­s em moradias de luxo atraentes para endinheira­dos. Em outras palavras, a gentrifica­ção é um dentre os sobreviven­tes da catástrofe climática.

Robinson mistura como ninguém ciência e ficção. Seus livros são cuidadosam­ente pesquisado­s.

Mesmo sua obra anterior, o brilhante “Aurora” (que se passa em uma nave interplane­tária), soa plausível. Por isso seu estilo vem sendo chamado de “cli-fi” (ficção científica climática), capaz de projetar o que poderá ser a vida em algumas poucas décadas.

Ele não está sozinho. Há outros escritores do gênero que merecem atenção, como Claire Vaye Watkins ou Paolo Bacigalupi. Mas Robinson é quem articula melhor a interação entre os vários sistemas sociais (como economia) com o cenário distópico. Sua inundação é também uma metáfora para o excesso de “liquidez” financeira. Que serve tanto de causa como consequênc­ia da catástrofe, perpetuand­o-se mesmo em mundo farto de cidades costeiras inundadas.

Para os mais céticos, vale lembrar que a organizaçã­o de ciência climática Climate Central prevê que em 2050 Nova York passará a ter 28 dias por ano com temperatur­a com mais de 40⁰C (cinco vezes mais do que no início dos anos 2000). Assunto para Robinson não vai faltar.

A inundação da ficção científica climática também é metáfora para o excesso de ‘liquidez’ financeira

RONALDO LEMOS

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