Folha de S.Paulo

Espantalho perfeito

- ALESSANDRA OROFINO COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Alessandra Orofino; quarta: Jairo Marques; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Luís Francisco Carvalho Filho; domingo: Antonio Prata

A TRAGÉDIA já foi noticiada por essa mesma Folha: apenas este ano, quase 100 policiais militares —e outros tantos civis— foram assassinad­os no Rio de Janeiro. A maioria desses homens e mulheres morre fora de serviço —reagindo a assaltos, ou sendo reconhecid­os como policiais por assaltante­s que os executam. Ou seja: os policiais fluminense­s são vítimas do mesmo caos de segurança pública que assola o Estado e ameaça todos os cidadãos. E ter uma arma na mão, ao contrário do que professam os detratores do estatuto do desarmamen­to, não é garantia de proteção para ninguém.

A política de segurança do Rio, que nos últimos anos orbitou em torno do projeto das UPPs, colapsou. Os policiais também são servidores públicos abandonado­s por um Estado que, após quase dez anos de desgoverno nas mãos da máfia do PMDB —e com apoio, reiteradas vezes, do PT— é incapaz de honrar seus compromiss­os com sua própria força de trabalho. Os agentes que continuam lotados nas tais UPPs estão sem estrutura, sem efetivo e sem atenção —e só continuam ali, expostos, porque nosso governador se recusa a admitir que —seja por falta de recursos, seja por problemas inerentes à própria política pública— o projeto falhou. Estamos usando esses agentes de bucha de canhão para evitar uma perda política para um governador lunático, que abre licitação para jatinhos em meio à falência do Estado. Se nossos policiais fossem filhos da elite carioca, e não provenient­es de famílias humildes, a situação teria se tornado insustentá­vel há tempos.

Nossos policiais são também enxugadore­s de gelo profission­ais, colocados para matar e morrer em nome de uma proibição insana. A guerra às drogas não faz mais nenhum sentido —não impede ninguém que quer consumir de consumir e deixa um mercado multimilio­nário na mão de máfias e gangues fortemente armadas e com ação paraestata­l, dominando território­s inteiros. Mas a guerra às drogas dá muito dinheiro para muita gente, e se quem morre são apenas os pretos, pobres ou favelados, o custo político é baixo. Sobretudo porque, ao invés de imputar responsabi­lidade pelo caos a quem de fato a tem, estamos criando um espantalho, que distrai a população, a começar pelos próprios policiais: a tal “turma dos direitos humanos”. Da qual (a bem da verdade e para não ludibriar o leitor), eu mesma faço parte. É um espantalho perfeito.

Ao invés de olhar para a política de guerra às drogas, para a segregação do espaço público e marginaliz­ação da população favelada, para a crise de segurança como um todo, para os salários atrasados, para o governador e seus jatinhos, para Sérgio Cabral dormindo no ar-condiciona­do em Benfica ou Adriana Ancelmo em prisão domiciliar, para o “rei dos ônibus” solto por Gilmar Mendes, para o racismo estrutural, para a bancada da bala, para os governante­s surdos, mudos e indiferent­es, nossos policiais são ensinados a imputar a tragédia que os cerca —a perda absurda de vidas humanas, as crianças que vão crescer sem pais— aos defensores de direitos humanos. Aos que advogam por um controle externo da polícia, sim —porque uma polícia violenta jamais terá a confiança da população, colocando em risco sua própria efetividad­e e segurança— mas que também advogam por uma política de segurança comprometi­da com a vida. A vida de todos, inclusive dos policiais que estão morrendo, aos montes, diante de nossa pouca indignação.

Criamos um espantalho que distrai a população, a começar pelos policiais: a turma dos direitos humanos

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