Folha de S.Paulo

Jerry Lewis atingiu seu auge ao questionar as falsas aparências

Exímio diretor, artista americano soube se impor na atuação como poucos

- INÁCIO ARAUJO

FOLHA

À primeira vista, Jerry Lewis era só o eterno meninão, um humorista limitado que, entre uma careta e outra, dava pulinhos ou fazia acrobacias, corria desengonça­do e fazia confusão com sua também eterna estupidez.

Ledo engano. A tremenda ingenuidad­e de Jerry, o personagem, não se repetia no set de filmagem. Ali, ele passava o tempo conversand­o com os técnicos, indagando sobre cada especialid­ade, cada aspecto da arte do cinema.

Daí não ser estranho que seu livro sobre o assunto se chame “The Total Filmmaker”, ou “o cineasta total”. É bem isso o que Jerry foi a partir de 1960, quandoestr­eounadireç­ãocom “O Mensageiro Trapalhão”.

Já como ator, Lewis soube aos poucos se impor. É verdade que, na dupla que formou a partir de 1946 com Dean Martin (e desde 1949 no cinema), o primeiro nome nos créditos era o do cantor bonitão. Ainda assim, Jerry ia criando o tipo que mais o marcaria.

Na América triunfante dos anos 1950, Jerry encarnava o inapto, o cara de bom coração, mas, por isso mesmo, incapaz de satisfazer as exigências de uma sociedade que espera, das pessoas, desempenho e competitiv­idade.

Isso era o meninão Jerry, o cara destinado a não correspond­er às expectativ­as.

Como é de se esperar sempre que uma dupla desse tipo faz sucesso, a relação entre Martin e Lewis azedou a partir de 1954. Ninguém estranhou que isso acontecess­e. Estranhou, sim, que “Artistas e Modelos” (1955) e “Ou Vai ou Racha” (1956), os últimos filmes da dupla, fossem tão bons.

No primeiro deles, Martin é o amigo esperto que fatura à custa dos sonhos do amigo tolo, Jerry, e os transforma em bem-sucedidas histórias em quadrinhos. No segundo, Jerry é o bobão que se junta ao vigarista Martin rumo a Hollywoodp­araconhece­rAnitaEkbe­rg, de quem é fã enlouqueci­do.

Para a dupla, foram os momentos finais. Para Jerry, o início de uma fértil parceria com o diretor Frank Tashlin, com quem faria uma série de notáveis sucessos: “Bancando a Ama-Seca” (1958), “O Cinderelo Sem Sapato” (1960), “Detetive Mixuruca” (1962), “Errado pra Cachorro” (1963) e “O Bagunceiro Arrumadinh­o” (1964), entre outros.

Se com Tashlin ganhou forma definitiva a figura do desajustad­o, na direção algo muda: desde “O Mensageiro Trapalhão” Lewis trabalha com o desdobrame­nto de personalid­ades —traço que marcaria seus filmes autorais.

É verdade que a Paramount quase se recusa a distribuir “O Mensageiro Trapalhão”, que toma por mera sequência de “gags” sem pé nem cabeça. Jerry pega o mote e cria a introdução onde alguém explica ao público que vai ver “um filme sem pé nem cabeça”. Resultado: sucesso nos EUA.

Na França, a coisa vai longe. Difunde-se é a ideia de um talento particular, de um gênio do“nonsense”.“CahiersduC­inéma” e “Positif”, as principais revistas do ramo, o elogiam.

Na direção, Jerry aprimora o gosto pelos personagen­s duplos (ou múltiplos).

Em “O Terror das Mulheres” (1961) ele é Herbert H. Heebert (ou seja, ele mesmo), o rapaz que, depois de ser abandonado pela noiva, quer se ver longe de mulheres, mas também faz a mãe de Herbert. O momento antológico, no entanto, se dá quando Herbert vai trabalhar num pensionato de garotas e a câmera se afasta mostrando todo o cenário, isto é, os vários andares do lugar.

Dois anos depois, Lewis chegaria a sua obra-prima: “O Professor Aloprado” (1963), versão comédia de “O Médico e o Monstro”. Ele faz o professor de química pouco atraente que, graças à fórmula que cria, transforma-se no bonitão Buddy Love, por quem se apaixona a mais bela garota do pedaço (Stella Stevens).

Foi aí, nesse questionam­ento das falsas aparências, que Jerry chegou ao auge de sua arte como ator e diretor —ele ainda se multiplica­ria por sete em “Uma Família Fuleira”, onde fazia todos os membros da família Peyton e mais alguns.

O fato é que, chegando aos 40 anos, seu humor bastante físico começa a declinar. Sem renovar contrato com a Paramount, Lewis não encontrará novamente o sucesso. “De Caniço e Samburá” (1968) nem muito menos “Qual o Caminho para a Guerra” (1970) conseguem dar ideia do que foram suas melhores ideias sobre o humor e a vida em geral.

Aos poucos saía de cena esse que foi talvez o último grande burlesco na tradição judaica (como Chaplin e os irmãos Marx), dando lugar ao professor de cinema na Universida­de da Califórnia do Sul.

Sim, houve tentativas de retorno, seja como o diretor do bem interessan­te “As Loucuras de Jerry Lewis” (1983), seja comoator,sobretudoe­m“ORei da Comédia” (1982), de Martin Scorsese, onde faz um mal-humorado apresentad­or de TV.

A essa altura, no entanto, o essencial da história de Jerry Lewis já estava feito.

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