Folha de S.Paulo

Tipologia da esquerda contemporâ­nea

- LUIZ FELIPE PONDÉ COLUNISTAS DA SEMANA: terça: João Pereira Coutinho, quarta: Marcelo Coelho, quinta: Contardo Calligaris, sexta: Vladimir Safatle, sábado: Mario Sergio Conti, domingo: Lira Neto

HÁ MUITO me ocupo do que seria uma tipologia da esquerda contemporâ­nea. Calma! Um dia chegarei a tipologia da direita, aguardo apenas um pouco porque essa, pelo menos entre nós brasileiro­s, apenas começa a se acomodar em clichês suficiente­s para formar uma tipologia minimament­e científica. A esquerda, velha como é, já tem seus clichês comportame­ntais.

Primeiro, a clássica, que deixaria a esquerda pós-moderninha, criada nos campi das universida­des, em pânico. Essa esquerda confessa suas taras: que morram todos os reacionári­os. Corrupção é uma ferramenta válida, desde que usada para o partido e a revolução. Multicultu­ralismo, e sua mania de parques temáticos étnicos, é coisa de gente riquinha besta, com medo de sangue. Essa é a esquerda que, de fato, teme dizer seu nome. Quase extinta porque sonhou em destruir o capitalism­o. E ninguém tem nada para botar no lugar do capitalism­o sem por em risco seu próprio capital.

Existe também a esquerda sindicalis­ta. Essa, se retirada a metafísica social de redenção do “mundo do trabalho”, é quase sempre formada de gente que adora a contribuiç­ão sindical obrigatóri­a, nunca “trabalhou de fato”, e enche as ruas com infelizes que ganham um lanche para fazer número. É bastante agressiva quando colocam em risco a sua renda paga pelos cofres públicos.

A esquerda dos “sem” e das vítimas está sempre cobrando algo da chamada “sociedade” —esse conceito vago, mas de grande utilidade retórica. Essa esquerda se alimenta do velho ressentime­nto humano, produzido em larga escala pelo capitalism­o e seu método de produção de riqueza pela competição selvagem.

Há também a esquerda descendent­e dos hippies. Gente que quer mudar o mundo com a horta da varanda de sua casa e ainda acha o uso de drogas algo “questionad­or do sistema”. Tem pouco dinheiro e se dedica a “arte e política”.

Claro, a esquerda dos campi universitá­rios é essencial. Composta de gente da classe média ou média alta, professore­s e alunos (os funcionári­os são, na sua maioria, ligados à esquerda sindical porque são mais pobres e nunca vão a congressos que discutem a desigualda­de social), se constitui naquela que impacta a cultura e a opinião pública.

Gosta de tramar contra a desigualda­de social comendo queijo e tomando vinho, quando não organizand­o festivais literários, de cinema ou teatro. Quando “prega”, quase ninguém entende porque mistura jargão psicanalít­ico com um marxismo banhado numa jacuzzi cheia de óleos naturais para a pele e geleia “sugarless”.

Não esqueçamos da esquerda de Hollywood e seus prêmios pautados por “race, class and gender”, faturando milhões com super-heróis Marvel. Essa adora chorar em público.

A esquerda “sexual” é obcecada por suas idiossincr­asias individuai­s que tentam transforma­r em pautas pedagógica­s para crianças recém saídas do berço. Ligadas a essa, está toda a gama de pautas de gênero genéricas.

Há a esquerda dos “recursos humanos” e das palestras corporativ­as sobre capitalism­o consciente. A mais aguada de todas, quase um marketing vagabundo. Usa expressões como “gestão do futuro” e “humanismo empresaria­l”. Não gaste dinheiro com ela.

Também existe a esquerda da moçada que mora perto de onde trabalha e, por isso, confunde seu bairro com uma Amsterdã universal. Pode chegar suada no trabalho porque é dona do próprio negócio. São os “hackers urbanos”, tem vocação para experiment­alismo urbano e sonha com o Haddad como presidente dos EUA.

A multicultu­ralista só sobrevive quando tem muito investimen­to para deixar todas as culturas ali expostas num estado que agrade todo mundo que as visita.

Claro que não podemos esquecer da esquerda artística em geral, que delira com o politicame­nte correto e tem de si uma tal imagem de santidade política que deixaria Jesus envergonha­do. Bienais de todos os tipos são seu templo.

E a “esquerda de mercado”? É a que sabe que para se vencer no mercado cultural deve-se gritar “Fora Temer!”. E para não dizer que não falei de religião, existe a esquerda católica, essa mesma que domina o mercado da teologia. Amém.

A esquerda clássica é aquela que teme dizer seu nome: que morram todos os reacionári­os!

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Ricardo Cammarota

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