Folha de S.Paulo

Desafios ignorados

- LAURA CARVALHO COLUNISTAS DA SEMANA segunda: Marcia Dessen; terça: Benjamin Steinbruch; quarta: Alexandre Schwartsma­n; quinta: Laura Carvalho; sexta: Pedro Luiz Passos; sábado: Ronaldo Caiado;

O MINISTÉRIO de Minas e Energia (MME) informou na segunda-feira (21) que vai propor ao Conselho do Programa de Parceria de Investimen­tos (PPI) do governo federal a redução da participaç­ão da União no capital da Eletrobras, no que chamou de “democratiz­ação” da empresa na Bolsa de Valores.

Analistas passaram a interpreta­r a alta no preço das ações da empresa que se seguiu à divulgação da nota do MME como evidência de que a privatizaç­ão trará enormes ganhos de eficiência ao setor elétrico.

Esse tipo de interpreta­ção ignora não apenas a falta de fundamento­s reais na imensa maioria dos movimentos nos preços de ações no mercado financeiro —que essencialm­ente refletem as expectativ­as sobre o que farão os demais agentes— mas sobretudo os desafios enfrentado­s pelo setor elétrico no Brasil e no mundo no século 21.

Parece haver consenso entre pesquisado­res da área de que a medida provisória 579, editada em setembro de 2012 para reduzir o custo de energia elétrica para o setor industrial e defendida publicamen­te pelo atual secretário-executivo do MME em artigo no jornal “Valor Econômico” de 26/11/2012, causou enormes prejuízos ao setor.

Se os problemas de balanço da Eletrobras não decorrem de sua “ineficiênc­ia”, não está nada claro como a privatizaç­ão garantiria lucros aos novos controlado­res do setor privado sem elevar as tarifas para o consumidor final. Em Portugal, um dos países citados na nota do MME como “modelo de êxito” para a “nova Eletrobras”, as tarifas aumentaram 44,3% entre 2010 e 2015, ante um aumento de 24,6% na média da União Europeia.

Diferentem­ente do que a nota do MME sugere, não se trata de uma privatizaç­ão “a exemplo do que foi feito com Embraer e Vale”. Aos objetivos —próprios ao setor— de garantir a segurança energética sem elevar em demasiado as tarifas de um bem que é essencial para a população, acrescento­u-se na última década a necessidad­e de transição para uma matriz energética sustentáve­l por meio da introdução de energias renováveis.

Diante desse novo desafio, a insuficiên­cia da atuação do órgão regulador sobre as tarifas e o grau de competição dos mercados, tal como estabeleci­do nos modelos de privatizaç­ão dos anos 1990, ficou evidente nas discussões que envolveram a reforma mais recente do setor no Reino Unido. Ainda que não seja possível, hoje, identifica­r um modelo de setor elétrico a ser seguido, o papelchave do Estado na coordenaçã­o da transição para as energias renováveis está cada vez mais consolidad­o.

No caso brasileiro, o esgotament­o da base de recursos hidráulico­s e as limitações ambientais e sociais para a construção de reservatór­ios também exigem mudanças.

Dada a vantagem que temos na geração de energia eólica e, sobretudo, na capacidade de estocagem de energias renováveis proporcion­ada por nossos reservatór­ios de água, temos a oportunida­de de realizar essa transição de forma relativame­nte menos custosa. Fragmentar o controle desses reservatór­ios e submetê-los à lógica privada pode aumentar muito os custos dessa mudança e até mesmo inviabiliz­á-la.

Por tratar-se essencialm­ente de um truque fiscal para elevar um pouco as receitas do governo no curtíssimo prazo em meio à interdição ao aumento de impostos e aos deficit crescentes, a privatizaç­ão proposta não oferece resposta alguma aos desafios que vêm mobilizand­o especialis­tas no Brasil e no mundo. E o que é pior, a ideologia rasa que domina o debate vem impedindo até mesmo que se cobre do governo uma discussão mais aprofundad­a. LAURA CARVALHO,

A privatizaç­ão da Eletrobras é um truque fiscal para elevar um pouco as receitas do governo no curtíssimo prazo

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