Folha de S.Paulo

Guerra de facções eleva mortes no Nordeste

- CARLOS MADEIRO FLÁVIO COSTA

DO UOL

“O salve [ordem] é para matar quem for PCC. Hoje mesmo mataram um e mandaram um vídeo. Quando sair, tem que rasgar a camisa e ficar de boa”, diz, por telefone, um homem investigad­o, sendo retrucado em seguida por uma mulher também investigad­a. “Não tem que rasgar a camisa, não; tem que arrancar a cabeça dele.”

O diálogo intercepta­do pela polícia de Alagoas está transcrito em uma decisão judicial de 28 de abril de 2017, em que a defesa dos dois suspeitos de tráfico de drogas pedia a liberdade da prisão preventiva. A Justiça negou por entender que a soltura da dupla traria riscos à sociedade.

A conversa revela um cenário que já é percebido pelas autoridade­s do Nordeste e fez o número de assassinat­os explodir, comparando-se os números do primeiro semestre deste ano com o mesmo período do ano passado: aumento de 11% em Alagoas, 25,4% no Ceará e 22,4% no Rio Grande do Norte.

São nesses três Estados que a maior facção criminosa do país, o PCC (Primeiro Comando da Capital), está mais presente no Nordeste. E, em todos eles, está em guerra com o CV (Comando Vermelho) e facções locais por espaço dentro e fora dos presídios.

Decisões dos tribunais de Justiça dos outros seis Estados nordestino­s, às quais o UOL teve acesso, indicam que o grupo criminoso paulista está presente em toda a região.

Segundo levantamen­to do MP-SP (Ministério Público de São Paulo), o Nordeste e o Norte já respondem por um terço de filiados do PCC. Os nove Estados nordestino­s juntos teriam 3.818 filiados à facção (sendo 73% desse total em AL, CE e RN).

“Esses Estados têm mais membros ‘batizados’ do PCC porque são os que, originalme­nte, detinham em seus sistemas prisionais o maior número de detentos paulistas, que já eram do PCC e passaram a cooptar criminosos locais”, afirma o promotor Lincoln Gakiya, membro do Gaeco do MP-SP (grupo de combate ao crime organizado).

Investigaç­ões oficiais detectam a presença do PCC no Nordeste desde, pelo menos, 2006, quando foi realizada a CPI do Tráfico de Armas.

À época, a investigaç­ão revelou que o chefe da facção paulista, Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola, enviou o traficante Sidnei Ro- mualdo para comandar ações do PCC na região. Paraibano criado em Diadema (SP), Sidnei foi preso em Pernambuco. Há dois anos, tentou sem sucesso escapar de uma prisão em Sergipe. CAUSAS DA GUERRA Durante um mês, o UOL investigou a participaç­ão e influência de grupos “forasteiro­s” nesse aumento de mortes violentas nos Estados nordestino­s. A disputa tem origem na guerra que opõe o PCC ao CV. O maior grupo criminoso do Rio de Janeiro é parceiro das facções regionais, que são contra a tendência monopolist­a do grupo paulista, apurou a reportagem.

“O PCC tem um caráter monopolist­a. Tem o desejo de controlar todas as rotas de tráfico de drogas e os principais mercados do país e isso inclui, obviamente, a região Nordeste”, afirma o procurador de São Paulo Márcio Sergio Christino, especializ­ado em investigaç­ões sobre o PCC.

A guerra entre PCC e CV remonta a 2013 e teve origem em Mato Grosso. Lá, membros do CV local passaram a impedir que o PCC cooptasse novos criminosos em presídios. A postura começou a ser seguida por outras facções regionais e franquias do CV. “No CV, cada facção tem autonomia para agir como quiser em seu território”, explica Gakiya.

São consequênc­ias dessa disputa os massacres registrado­s nos últimos meses em presídios, a exemplo do ocorrido em Manaus em janeiro, quando a FDN (Família do Norte) matou 60 integrante­s do PCC. PELO NORDESTE “Temos certeza de que as mortes cresceram [pela guerra de facções], todas as inteligênc­ias apontam isso”, afirma o secretário de Segurança de Alagoas, Lima Júnior.

“Tivemos um pico nos três primeiros meses [do ano], após a matança nos presídios. Dali desencadea­ram esses comandos para se matarem, e isso tem por trás a disputa nacional pelo tráfico.”

Em Alagoas, o número de assassinat­os cresceu 12% no primeiro semestre, em relação ao mesmo período do ano anterior. Foram 1.031 mortes, contra 923 nos seis primeiros meses de 2016. O número crítico, porém, aparece na capital, Maceió, com aumento de 69%: 372 mortes no primeiro semestre contra 220 em 2016.

Segundo levantamen­to do MP-SP, o Estado é o segundo em número de faccionado­s do PCC no Nordeste, atrás apenas do Ceará. No levantamen­to do MP-SP, seriam 970. Mas a secretaria alagoana já contabiliz­a mais de 1.300 nomes ligados à facção. No Estado, a guerra é diretament­e entre ligados ao PCC e ao CV, sem “intermediá­rios”.

O Ceará é o segundo Estado do país em número de filiados do PCC e enfrenta gra- ves problemas na segurança pública. No primeiro semestre deste ano foram 2.229 mortes violentas, contra 1.777 no mesmo período do ano passado, cresciment­o de 25,4%.

O Estado tem uma ligação histórica de cooptação de grupos como o CV, ainda na década de 1990, e do PCC, nos anos 2000. O assalto ao Banco Central, em 2006, teve participaç­ão da facção paulista.

Procurada, a Secretaria de Segurança Pública do Ceará disse que, para coibir a atuação de grupos criminosos no Estado, criou em 2016 a Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizada­s. Já a Divisão de Homicídios teve o número de delegacias ampliado de 5 para 11 em 2017. ‘APATIA’ A situação no Rio Grande do Norte é ainda mais grave: a crise de segurança explodiu após a matança dentro do presídio de Alcaçuz, em Nísia Floresta (Grande Natal).

No primeiro semestre, o Estado registrou 1.202 mortes, contra 982 no mesmo período ano passado —um aumento de 22,4%. Se seguir neste ritmo, o Estado terminará o ano com 77 homicídios a cada 100 mil habitantes, algo nunca registrado em uma unidade da federação brasileira.

“O fato é que o Estado falhou e falha diariament­e em prover um serviço de qualidade para todos. Nessa atitude apática se consolidou uma ausência de empenho e esforço estratégic­o no combate à formação e ao fortalecim­ento desses grupos criminosos”, afirma o pesquisado­r Ivênio Hermes, coordenado­r do Obvio (Observatór­io de Violência Letal Intenciona­l).

O Obvio é um grupo de estudos ligado à Ufersa (Universida­de Federal Rural do Semi-Árido) e que faz a contabilid­ade de homicídios no Estado do Rio Grande do Norte.

Procurada por diversas vezes, por e-mail e telefone, em julho e agosto, a Secretaria de Segurança Pública do RN não se manifestou sobre o aumento no número de homicídios e a guerra de facções. PREOCUPAÇíO REGIONAL A questão das facções se tornou uma preocupaçã­o tão intensa que será alvo de debate inédito entre os gestores da área dos Estados da região.

“Nós temos uma reunião em 24 de agosto, e um dos pontos de pauta é a questão das facções e a influência do PCC e do CV. É um fenômeno que a gente tem ouvido dos detidos”, diz Maurício Barbosa, secretário de Segurança Pública da Bahia e presidente do Conselho de Secretário­s de Segurança do Nordeste.

“Não há como pensar política de segurança que não passe pelo enfrentame­nto ao PCC como estrutura organizada, desde a produção à distribuiç­ão de drogas”, completa.

 ?? Reinaldo Jorge - 12.mai.2017/Diário do Nordeste ?? Local onde ocorreu um duplo homicídio em Fortaleza; o Ceará tem o segundo maior número de filiados ao PCC no país
Reinaldo Jorge - 12.mai.2017/Diário do Nordeste Local onde ocorreu um duplo homicídio em Fortaleza; o Ceará tem o segundo maior número de filiados ao PCC no país
 ?? Magnus Nascimento - 21.fev.2017/Tribuna do Norte ?? Remoção dos corpos de 13 vítimas de chacina em Ceará Mirim (RN); Estado teve disparada de mortes no 1º semestre
Magnus Nascimento - 21.fev.2017/Tribuna do Norte Remoção dos corpos de 13 vítimas de chacina em Ceará Mirim (RN); Estado teve disparada de mortes no 1º semestre

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