Domenico
Starnone, visto como peça no mistério sobre identidade da escritora italiana, lança no Brasil livro que tem semelhanças com obra dela; ‘Não sou Ferrante, e tenho pouco interesse nisso’, diz autor do ótimo ‘Laços’
COLUNISTA DA FOLHA
O italiano Domenico Starnone nunca mais teve paz.
Mesmo sendo um dos autores mais importantes de seu país, a existência dele como artista foi atada a um mistério: a verdadeira identidade de Elena Ferrante.
Basta olhar como a crítica internacional recebeu “Laços”, romance que ele lança agora no Brasil.
As resenhas tornaram-se uma busca por pistas escondidas —e logo viram-se semelhanças entre esse livro e “Dias de Abandono”, de sua compatriota. As semelhanças passam pelo tema —o adultério—, imagens e personagens (veja algumas no quadro nesta página).
A desconfiança não é vazia. Há dez anos, um grupo de físicos e matemáticos colocou os livros de Ferrante em um software de análise de texto —e o computador disse ser “alta” a probabilidade de a autora misteriosa ser Starnone.
Para piorar, no ano passado, o jornalista Claudio Gatti divulgou os resultados da investigação que realizou a fim de descobrir a identidade da autora de “A Amiga Genial”.
Por meio de registros imobiliários e financeiros, ele provou um crescimento no patrimônio da tradutora Anita Raja e nos pagamentos feitos a ela pelas Edizioni E/O, casa que publica os livros de Ferrante. O incremento nos valores pagos, bem acima da média de mercado para um tradutor, coincidiam com o sucesso dos livros da italiana.
Anita Raja —surpresa!— é a mulher de Starnone. E aí?
“Não sou Elena Ferrante e tenho muito pouco interesse nesse tipo de pergunta. Deixemos disso”, diz o escritor à Folha, por e-mail.
O pedido é justo. Afinal, tudo isso são curiosidades extraliterárias.
Sim, “Laços”, pode até também ter em seu centro de gravidade um homem que abandona a família por uma mulher mais nova, como em “Dias de Abandono”. Mas é um livro cujas qualidades estão mais na sua particularidade do que na semelhança com a obra de Ferrante.
Para começo de conversa, o romance escrito por ela está centrado no desespero de uma mulher deixada. “Laços”, por sua vez, está mais interessado no poder destrutivo das relações familiares e na tentativa de reconciliação.
“As feridas deixam cicatrizes, e cicatrizes são marcas que reativam a memória. Isso é um obstáculo permanente ao perdão”, diz Starnone.
No livro, contado sob três pontos de vista —da mulher, do marido e dos filhos—, o casal, já reconciliado, um dia encontra seu apartamento revirado. E os objetos espalhados começam a despertar as memórias dolorosas.
O cenário surge como uma metáfora das ruínas sobre as quais os personagens vivem. TRADIÇÃO E TRAIÇÃO A tradição literária é pródiga em adúlteras ilustres, mas é incomum um autor escrever sobre a infidelidade masculina. Muito menos vista como algo desagregador, como faz o italiano.
“Nessa grande tradição literária, o casamento e a família são sempre corroídos dramaticamente pela infidelidade feminina”, diz ele, acrescentando que o adultério masculino era visto como um