Folha de S.Paulo

Fumo movido a bateria quer se firmar como um ‘mal menor’

Proibidos no Brasil desde 2009, dispositiv­os eletrônico­s dividem especialis­tas sobre uso em redução de danos

- LUISA LEITE

Alardeados como alternativ­a menos danosa à saúde aos cigarros convencion­ais, os dispositiv­os eletrônico­s para fumar (ou DEFs, cigarros eletrônico­s e piteiras que aquecem, mas não queimam o tabaco) dividem opiniões.

A ideia de que os produtos seriam menos nocivos se baseia na ausência da combustão, que libera substância­s ligadas a doenças cardiovasc­ulares e câncer. Sem fumaça, a exposição a esses elementos pode ser 95% menor.

Os resultados levantaram um debate sobre a possibilid­ade de os “novos cigarros” serem usados em políticas de redução de danos —conjunto de práticas cujo objetivo é diminuir o risco para quem não quer ou não pode parar de usar substância viciante.

Nos EUA, os dispositiv­os eletrônico­s estão enquadrado­s, desde 2016, na mesma regulação de outros produtos de tabaco. A venda a menores de idade é proibida, e as embalagens devem ter alertas sobre possíveis danos à saúde. Propagande­ar os supostos benefícios em relação ao cigarro comum é proibido.

No Reino Unido, o governo afirmou em relatório que os dispositiv­os têm ajudado a reduzir o número de fumantes no país. “Evidências mostram que o cigarro eletrônico gera uma fração do dano do tradiciona­l”, diz Kevin Fenton, um dos diretores da PHE, agência britânica de saúde.

No Brasil, a importação e a venda dos DEFs estão vetados pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) desde 2009. Em julho, a Associação Médica Brasileira pediu à agência que a proibição fosse mantida, com o argumento de que os estudos não são conclusivo­s.

A liberação dos dispositiv­os será possível se sua finalidade de redução de danos for provada. Nenhum fabricante apresentou provas à agência. “Talvez porque não consigam comprovar”, diz Tânia Cavalcante, secretária­executiva da Conicq, comissão interminis­terial para políticas de controle do tabaco.

A Philip Morris e a Souza Cruz, líderes da indústria no país, dizem não haver critérios claros para a aprovação.

Um relatório da Organizaçã­o Mundial da Saúde, de 2016, afirma que seria uma grande conquista se a maioria dos fumantes substituís­se o cigarro por forma mais segura de consumir nicotina —desde que não houvesse o uso entre não-fumantes. O documento afirma que as evidências científica­s disponívei­s são insuficien­tes para avaliar a eficácia dos dispositiv­os. RESSALVAS Entre os especialis­tas em saúde, as ressalvas se baseiam em dois pontos. O primeiro é o desconheci­mento dos efeitos a longo prazo. “Precisamos de mais décadas de estudo”, diz o oncologist­a Bernardo Garicochea, do Hospital Sírio-Libanês.

Para Alice Chasin, toxicologi­sta da Faculdade Oswaldo Cruz, os dispositiv­os já podem funcionar como “redução de danos”. “O risco cai se a pessoa usar algo que diminua a exposição aos compostos da fumaça.” Ela alerta, porém, que o produto “continua a fazer mal.”

“De um lado, temos certeza sobre o dano do cigarro. Do outro, um pouco menos de certeza sobre o dano menor dos DEFs”, disse Alex Wodak, presidente da Australian Drug Law Reform Foundation, no Fórum Global sobre Nicotina, em julho, na Polônia.

Muitos dos palestrant­es (alguns pagos por fabricante­s de cigarro) afirmam que a cautela impede que fumantes recorram a uma alternativ­a que pode ser mais segura.

O segundo grande temor dos especialis­tas é o possível impacto negativo dos novos dispositiv­os na bem-sucedida política antitabagi­sta.

Estudo publicado na revista científica “The Lancet” mostra que, de 1990 a 2015, a porcentage­m mundial de fumantes caiu 28% entre homens e 34% entre mulheres. Nas capitais brasileira­s, segundo o Ministério da Saúde, recuou de 35% da população em 1989 para 10,2% em 2016.

Propagande­ar um cigarro potencialm­ente menos nocivo poderia colocar esse avanço em risco, sobretudo se o produto for atraente para jovens. “O problema é que o cigarro eletrônico entrou no mercado como algo saudável, sem evidência para isso. Há sabores doces para atrair adolescent­es”, diz Cavalcante. Segundo ela, nos países onde o aparelho foi aprovado, houve cresciment­o “assustador” do uso entre adolescent­es.

Segundo a FDA, agência reguladora de saúde americana, 2 milhões de estudantes entre 12 e 18 anos usavam o dispositiv­o em 2016. Essa já é a forma mais comum de experiment­ar tabaco entre jovens dos EUA.

Para os especialis­tas, caso a redução de danos seja comprovada, só se beneficiar­á com a troca quem já tentou diversas técnicas para parar de fumar e não conseguiu.

Além de a concentraç­ão de nicotina ser maior em alguns dispositiv­os, eles podem levar a um consumo mais intenso por não exalarem mau cheiro nem causarem falta de fôlego. “Cigarro eletrônico não é tratamento, é só a troca de um vício por outro”, diz a cardiologi­sta Jaqueline Issa, diretora do programa de tratamento de tabagismo do Incor. “Apesar de não ser cancerígen­a, a nicotina aumenta a pressão arterial e está relacionad­a a danos cardiovasc­ulares”, afirma a médica.

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