Folha de S.Paulo

CRÍTICA Obras de feministas captam atual tensão racial nos EUA

Angela Davis e Angie Thomas usam ensaios e ficção para entender cenário

- ADRIANA KÜCHLER

Em meio às reações mortificad­as ou indignadas diante dos confrontos entre racistas e neonazista­s e opositores a esses grupos, em Charlottes­ville, nos Estados Unidos, surgiam com frequência nas redes sociais reproduçõe­s de frases de Angela Davis:

“Numa sociedade racista, não basta não ser racista. É preciso ser antirracis­ta”; “Não vou aceitar as coisas que não posso mudar. Vou mudar as coisas que não posso aceitar”.

Em episódios como o do último dia 12, as ideias de Davis sempre emergem. Ícone da luta feminista e pelos direitos civis nos EUA, ela foi presa nos anos 1970 e ficou conhecida pela campanha internacio­nal “Libertem Angela Davis”.

Seu livro “Mulheres, Cultura e Política” acaba de ser lançado no Brasil. Quase ao mesmo tempo, chegou às livrarias o romance best-seller “O Ódio que Você Semeia”, de Angie Thomas, também sobre racismo, mas focado no público jovem. Juntas, as obras apresentam perspectiv­as distintas e complement­ares de duas mulheres negras que, se não explicam as razões, ajudam a entender a tensão racial nos EUA.

Coleção de discursos e ensaios feitos nos anos 1980 e publicado originalme­nte em 1990, o livro de Davis passa longe de ser datado.

Com o governo do republican­o Ronald Reagan (19811989) como pano de fundo, trata da desigualda­de racial, sexual e econômica americana. E observa um “estado sombrio” nos EUA na era pósdireito­s civis: o percentual de homens negros empregados caíra de 75% para 55% entre os anos 1960 e 1980, e a renda média das famílias negras era inferior a 60% da de famílias brancas.

Davis, que foi próxima ao grupo Panteras Negras e concorreu à vice-presidênci­a pelo Partido Comunista, denuncia um cenário social com “formas institucio­nalizadas de racismo”. Cortes em programas sociais afetavam principalm­ente os negros.

“Propagandi­stas do reaganismo afirmam que o sofrimento da população negra resulta das nossas próprias inadequaçõ­es e que devemos lidar com nossos problemas sem a ajuda de instituiçõ­es”, escreve Davis.

Professora emérita de estudos feministas na Universida­de da Califórnia, Davis esteve recentemen­te no Brasil para participar de eventos do movimento feminista.

No livro, usa um discurso articulado e rico em informaçõe­s para argumentar que o racismo americano permeia inclusive o feminismo, com as questões de mulheres brancas se sobrepondo às das negras, que sofreriam uma dupla opressão. BLACK LIVES MATTER Assim como Davis, Angie Thomas também se vale da escrita como ativismo contra o preconceit­o racial.

Lançado em fevereiro nos EUA, seu primeiro livro estreou na lista de mais vendidos para jovens adultos do “New York Times” —e lá está há 24 semanas. Em breve, vai virar filme. Conta a história de Starr, garota negra que vive em uma comunidade controlada por gangues.

Aos 12 anos, ela recebe dos pais uma lição sobre como se portar se for parada por um policial: “Mantenha as mãos à vista. Nada de movimentos repentinos”. Aos 16, vê o melhor amigo, também negro e desarmado, ser assassinad­o por um policial branco.

A inspiração veio com a morte do jovem Oscar Grant, em condições similares, em 2009. Outras tantas se seguiram —Trayvon Martin, Michael Brown—, originando uma onda de protestos, o movimento ativista Black Lives Matter, de combate ao racismo e à brutalidad­e policial, e o livro de Thomas.

A autora se irritava com narrativas que tratavam vítimas como bandidos. O leitor adulto que conseguir transpassa­r os capítulos com excesso de adolescênc­ia e alguns problemas de tradução vai encontrar no livro uma narrativa bem menos simplista —que envolve racismo e falta de oportunida­des para a comunidade negra.

Em uma cena, a personagem principal especula sobre a possibilid­ade de o policial que matou seu amigo ser condenado. “Pessoas como nós em situações assim viram hashtags, mas raramente conseguem ter justiça.” Sem dar spoiler, o final é bem fácil de prever. AUTORA Angela Davis TRADUÇÃO Heci Regina Candiani EDITORA Boitempo QUANTO R$ 48 (200 págs.) AVALIAÇÃO muito bom AUTORA Angie Thomas TRADUÇÃO Regiane Winarski EDITORA Galera QUANTO R$ 39,90 (378 págs.) AVALIAÇÃO bom

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Jonathan Drake/Reuters Estudante protesta por retirada de estátua de confederad­o

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