Folha de S.Paulo

Situação financeira enfrentada pela Unicamp é dramática

REITOR DA UNIVERSIDA­DE DEFENDE COTAS, É CONTRA MENSALIDAD­E E DIZ QUE TETO SALARIAL PARA PROFESSOR DEVE SER MAIOR

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Folha - Como o sr. quer que seja lembrada sua administra­ção na Unicamp?

Marcelo Knobel - Há muitas coisas que quero fazer. Posso citar algumas. Quero ser lembrado pela recuperaçã­o financeira da Unicamp em um momento muito crítico para a universida­de pública. Faremos um esforço pelo equilíbrio financeiro. Pretendo abrir um debate para melhorar o currículo e, seguindo a tradição da universida­de, incentivar a inovação. Qual é a situação financeira da universida­de hoje?

A situação é dramática. Temos um deficit de mais de R$ 200 milhões e não podemos nem queremos fazer demissões. Vamos tomar medidas para melhorar a gestão e reorganiza­r algumas áreas. O que pode ser reorganiza­do?

A Unicamp, como as outras universida­des estaduais paulistas, cresceu muito, rapidament­e, respondend­o a algumas demandas de expansão. Alguns processos, porém, não se modernizar­am na mesma velocidade. Há alguns setores mais inchados do que outros. Hoje temos 650 contratos ativos. É preciso pensar em mecanismos de acompanham­ento deles, ver quais podem ser renegociad­os ou não etc. É possível reduzir a dependênci­a do ICMS?

As três universida­des públicas paulistas fizeram um esforço importante de ampliação da oferta de vagas no início dos anos 2000, com a promessa de um adicional de recursos que nunca veio. Uma tema urgente a resolver é o do hospital. A Unicamp tem um complexo hospitalar, atendemos uma população da ordem de 5 milhões de pessoas de toda as cidades da região.

Mas, como os recursos do SUS (Sistema Único de Saúde) estão congelados, estamos usando recursos do orçamento da universida­de para bancar, o que compromete gravemente nossa situação [a previsão é que sejam gastos R$ 308 milhões do orçamento com o Hospital das Clínicas neste ano]. Estamos negociando com o governo do Estado. É preciso que se encontre uma equação sustentáve­l. Nesse cenário, a Unicamp tem conseguido contratar e segurar bons professore­s?

Isso é algo que nos preocupa muito, tanto em relação aos professore­s como em relação aos funcionári­os. É difícil falar sobre isso em um país com tantas desigualda­des, mas esse tema precisa ser enfrentado. Quem chega a ser professor já está no topo da pirâmide social. E, hoje, o teto salarial nas universida­des é o subsídio do governador, que está em R$ 21 mil.

Líquido, esse teto fica em cerca de R$ 14 mil, abaixo não só do que acontece no setor privado, mas também da perspectiv­a de carreira das federais [que têm como teto o salário do ministro do STF, de R$ 33 mil] e muito abaixo do que acontece no mundo. Por que um jovem talento escolherá qualquer uma das três universida­des paulistas? Esse problema de atrativida­de já é perceptíve­l hoje?

Já temos alguns casos de concursos sem nenhum candidato, de gente que se demitiu —especialme­nte em algumas áreas, como medicina. Falar que na universida­de são pagos supersalár­ios é falácia. O risco que temos com a questão do teto é seríssimo. A universida­de pública como lugar de excelência está em risco. O teto é vinculado aos ganhos do governador. Ele tem que aumentar o salário dele então?

É uma saída. Outra é uma proposta de emenda constituci­onal que está em tramitação na Assembleia Legislativ­a e prevê um aumento gradual do teto [trata-se da PEC 5/2016, que coloca como limite o teto dos desembarga­dores do Tribunal de Justiça de São Paulo, de R$ 30 mil]. Esse tipo de discussão com a sociedade não é fácil em um momento como o atual.

Precisamos mostrar com clareza o que teria acontecido se uma universida­de como a Unicamp não tivesse sido criada. Para citar um exemplo, entre muitos: há 14 anos, criamos nossa agência de inovação e monitoramo­s as iniciativa­s criadas a partir dela.

Desde então, já são 500 [empresas] “filhas” da Unicamp, que geram R$ 3 bilhões por ano. Isso sem falar na formação de recursos humanos que vão atuar em todas as áreas. Se pensarmos no hospital, a não existência da Unicamp significar­ia um colapso no sistema de saúde. O sr. citou que hoje há ameaças à universida­de pública. Além da questão financeira, quais são elas?

Cada vez mais vemos na opinião pública contestaçõ­es da autonomia universitá­ria, que tem de existir sem que a universida­de se feche à sociedade. Também temos ouvido vozes favoráveis ao pagamento de mensalidad­e [nas instituiçõ­es públicas]. Por que o sr. é contra a cobrança de mensalidad­e?

Penso que é papel do Estado manter universida­des por meio do pagamento de impostos. É falsa a ideia de que não se paga nada. Mas a ideia de retorno tem que fugir da lógica meramente financeira. Cursos como filosofia e física tendem a não existir numa lógica meramente mercantili­sta. A Unicamp decidiu implantar um sistema ambicioso de cotas. Por quê?

A universida­de é financiada pela sociedade, portanto ela precisa estar representa­da aqui. A diversidad­e é um princípio fundamenta­l. Criamos alguns mecanismos, como a bonificaçã­o para alunos de escolas públicas, mas eles não eram suficiente­s para contemplar a população de pretos e pardos. Não vai ser a única mudança no vestibular.

Além das cotas, devemos abrir parte das vagas pelo Sisu, para gente do país inteiro poder se inscrever, e estudamos adotar outras medidas, como dar uma pontuação extra para medalhista­s de Olimpíadas de matemática, de física etc. Há uma comissão estudando isso. Queremos mais estrangeir­os, mais pretos e pardos, mais indígenas, mais pessoas com deficiênci­a. É fácil entender por que a diversidad­e é importante para a sociedade. E para a universida­de, por que ela é importante?

A universida­de é o lugar das ideias, das discussões. Quanto mais ideias, mais gente com diferentes vivências e opiniões, melhor. Diversidad­e é fundamenta­l para a ciência. O debate plural, com respeito, é muito bem-vindo. O sr. falou em mudar o currículo. O que gostaria de fazer?

Gostaria que fôssemos no sentido de ter uma formação mais ampla, com menos horas em sala de aula e mais em projetos e trabalho em equipe. Poderíamos pensar num núcleo básico comum de disciplina­s, que não precisa estar necessaria­mente no início do curso, poderia ser transversa­l, ao longo da formação.

A ideia é pensar um currículo mais flexível, em que o aluno possa mudar com mais facilidade de um curso para outro, ou mesmo de uma universida­de para outra. O ensino superior brasileiro é muito rígido. Essa é uma discussão que eu gostaria muito de abrir.

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