Folha de S.Paulo

De quem é o Parque do Povo?

- LEÃO SERVA COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Leão Serva; quarta: Francisco Daudt; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Oscar Vilhena Vieira; domingo: Antonio Prata

O PARQUE do Povo é um oásis verde assentado entre avenidas de grande movimento no Itaim Bibi. Milhares de motoristas passam em velocidade pela marginal Pinheiros, pela Cidade Jardim ou pela Juscelino Kubitschek e podem nem notar que ali existe uma grande área verde, com pista para corredores e ciclistas, jardins, quadras de esporte e aparelhos de ginástica.

Enquanto uns cruzam de carro pelo asfalto e outros atravessam o parque a pé, ninguém nota que está se consolidan­do novamente um uso privado irregular dentro daquela área pública que tanto custou a ser recuperada: o terreno concedido ao Grupo Ventoforte está sendo usado por estacionam­ento que até desmontou um dos três teatros e derrubou área verde para abrir espaço aos automóveis.

O parque foi inaugurado em 2008 depois de muitas décadas de disputas judiciais contra invasores que haviam ocupado e “privatizad­o” terrenos de diferentes órgãos públicos descuidado­s, como a Caixa Econômica e a Previdênci­a Social (que abandona propriedad­es em vez de vendê-las para abater seu deficit).

Ali, por trás de uma muralha de outdoors irregulare­s, que caiu com a lei Cidade Limpa, havia de tudo: uma empresa que explorava campos de futebol, uma favela que crescia consistent­emente, bares, uma escola de circo mambembe que alugava espaço para festas caras, um estacionam­ento caro. E um teatro popular importante no cenário cultural da cidade. Todos se beneficiav­am da terra “grátis” que o descaso com a coisa pública propiciava.

Aberto o parque, a área ganhou imediatame­nte uma grande frequência, como outras poucas na cidade. Foi para ligá-la ao Ibirapuera que a prefeitura criou originalme­nte a “ciclofaixa de lazer” dominical, que deu mais força às bicicletas na cena paulistana.

Restam algumas áreas para serem resgatadas, as três separadas do parque por ruas asfaltadas: duas quadras permanecem sem destinação, e uma é usada por um grande estacionam­ento privado.

Já o Ventoforte, fundado pelo dramaturgo Ilo Krugli e instalado ali desde os anos 1970, foi beneficiad­o por concessão pública em reconhecim­ento à sua importânci­a para a cultura paulistana. Os três galpões usados como teatros ficaram separados do parque por uma cerca viva, com algumas grandes árvores, criando um ambiente harmonioso, perfeito para a criativida­de do grupo.

Numa cidade apressada, poucos talvez tenham notado que recentemen­te o local mudou radicalmen­te: o verde deu lugar a um estacionam­ento e ao aluguel de bicicletas. Um dos três teatros e boa parte do verde foram derrubados para dar espaço aos carros.

Alguém poderia dizer: o teatro precisa de dinheiro para se sustentar. Mas se Ilo Krugli conseguiu gerar toda sua reconhecid­a contribuiç­ão para a cultura brasileira desde os anos 1970 naquele mesmo local, sem ter estacionam­ento, o mais provável é que seja um argumento torto, que Krugli nem saiba o que estão fazendo no fundo do teatro.

Parafrasea­ndo um ditado antigo, “o preço da coisa pública é a eterna vigilância”. Ainda que pareça sutil, a mudança da destinação cultural original para uma empresa de estacionam­entos altera o contrato que a cidade tem com o espaço. São Paulo precisa de cultura e áreas verdes. Os estacionam­entos privados não fazem parte desse pacote.

Área foi aberta após décadas de exploração privada, mas falta resgatar três quadras e discutir área de teatro

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