Folha de S.Paulo

ANÁLISE Músico plural, desprezou os estrelismo­s e os preconceit­os

- LUIZ FERNANDO VIANNA

FOLHA

Até 1996, Wilson das Neves era “só” um dos mais importante­s bateristas da história da música brasileira. Foi lançado, então, o CD “O Som Sagrado de Wilson das Neves”, e o público descobriu algo que só os mais próximos sabiam: ele era bom cantor e excelente compositor.

A primeira faixa se tornou um clássico imediato: “O Samba É Meu Dom”. A letra de Paulo César Pinheiro fica ainda mais forte agora: “E é no samba que eu quero morrer/ De baquetas na mão/ Pois quem é de samba/ Meu nome não esquece mais, não”.

Todos o chamavam “Das Neves”, o que cabia bem em seu jeitão plural. Nas duas últimas décadas de vida, também foi ator, modelo de elegância masculina, decano da jovem Orquestra Imperial e companheir­o de gravações de Emicida, BNegão e outros talentos do rap e do pop —não por acaso, reuniu convidados em 2014 no show “Wilson dos Novos”.

Luciano Perrone foi quem conquistou para os bateristas, nas décadas de 1930 e 1940, o status de músicos nas orquestras. Antes, como dizia Das Neves, o homem das baquetas era chamado “batedor de boi morto”.

A partir dos anos 1950, Das Neves se tornou o mais consistent­e e influente dos discípulos de Perrone. Além do talento inato (“Não fui eu quem quis tocar. A música é que se engraçou comigo.”), dois fatores contribuír­am para isso: o desprezo pelo estrelismo e a ausência de preconceit­os.

O jazz e o rock consagrara­m a ideia de que bom baterista é o que faz solos longos e acrobático­s. Quando lhe pediam algo parecido, Das Neves cortava: “Não vim aqui para isso”.

Seu estilo nada tinha a ver com o virtuosism­o de outros grandes nomes do instrument­o, como Edison Machado.

Aprendeu nas orquestras de bailes (de maestros como Astor Silva, Ed Lincoln, Cipó) que o papel principal da bateria é dar o pulso do conjunto. Fazer isso bem não é pouco. E ele fazia bem como poucos.

Orgulhava-se de contar que Ataulfo Alves só gostava de gravar com ele, pois se irritava com os que faziam viradas na bateria. “Axim, voxê me atrapalha”, dizia para esses o grande compositor, com sua prosódia peculiar, segundo relato de Das Neves.

Desse jeito, foi conquistan­do o respeito e a admiração de todos com quem tocava: Elizeth Cardoso, Elza Soares, Elis Regina, Wilson Simonal, João Donato, Ney Matogrosso, Sarah Vaughan, Michel Legrand etc. etc. etc.

E aí entra a falta de preconceit­o. Não só por necessidad­e mas também por prazer participav­a de diversas formações, com múltiplas sonoridade­s, ao lado de artistas dos mais variados.

Integrou o conjunto Os Ipanemas, cultuado por DJs europeus. Lançou discos para dançar, com títulos como “O Som Quente É o Das Neves”. Gravou com músicos de jazz, de rock, de samba. E se transformo­u num baterista ainda mais conhecido ao acompanhar Chico Buarque nos últimos 30 anos.

Por coincidênc­ia, morreu na semana em que “o Chefia” lançou novo CD. Se Chico fizer show, Das Neves não estará lá com sua elegância e com seu bordão: “Ô sorte!”.

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