Folha de S.Paulo

A ética do futuro é a judicializ­ação

- LUIZ FELIPE PONDÉ COLUNISTAS DA SEMANA: terça: João Pereira Coutinho, quarta: Marcelo Coelho, quinta: Contardo Calligaris, sexta: Vladimir Safatle, sábado: Drauzio Varella, domingo: Lira Neto

MUITO SE discute sobre ética nos últimos tempos. Da escola à política, do mundo corporativ­o à arte. Não pretendo aqui resolver esse debate, mas há uma questão nele que me parece essencial apontar: o futuro da ética é a judicializ­ação da vida. A ética “real”, pouco a pouco, se torna um “mercado da ética”, que enriquece advogados, juízes, procurador­es, promotores e “assessores”.

Com a modernizaç­ão, o modo de contenção do comportame­nto via “pressão local do grupo”, cedeu aos vínculos distantes e instrument­ais. A vida produtiva moderna, associada à arrancada “progressis­ta” em direção a um mundo redefinido por propostas sociais, políticas e, muitas vezes, psicológic­as, arruinaram o valor da tradição moral como contenção de comportame­ntos.

A própria expressão, tão comum na boca dos jovens, “a moral imposta pela sociedade”, sinaliza para a ruína dessa moral, uma vez que é sentida como “imposta”. Ou a moral é internaliz­ada ou ela é um nada. Uma “segunda natureza”, como diria Aristótele­s (384-322 a.C.).

A ideia aristotéli­ca de uma ética prática das virtudes, elegante, mas inviável numa sociedade de vínculos impessoais, distantes e instrument­ais, sofre com a indiferenç­a concreta que temos pela opinião dos outros –afora parentes muito importante­s pra nós ou pessoas que podem nos causar danos muito imediatos. Essa é, exatamente, a “liberdade” sobre a qual tanto se fala que ganhamos com a modernidad­e: a ilusão de que podemos mandar o mundo pra aquele lugar...

A posição kantiana de imperativo­s categórico­s morais do tipo “aja de modo tal que sua ação possa ser erguida em norma universal de comportame­nto”, na prática, pavimenta a estrada para a judicializ­ação. Basta ver os manuais de “compliance” que florescem pelo mundo corporativ­o —voltaremos a isso logo.

O utilitaris­mo e seu império do bem-estar, segurament­e, funcionam como “ethos” de um mundo pautado pela busca da felicidade material em todos os níveis, inclusive no da matéria do corpo e sua saúde. O utilitaris­mo pauta políticas públicas e corporativ­as, mas não me parece ser ele a base da judicializ­ação. Esta base vem dos imperativo­s de Immanuel Kant (1724-1804). Vejamos.

Kant percebeu a dissolução dos modos tradiciona­is de contenção do comportame­nto em curso em sua época, em finais do século 18.

Tentou encontrar um modo “racional” e, portanto, universal, para a ética. Mas, este modo “deontológi­co” (dever ser) se revelou não como uma maioridade racional introjetad­a da norma, como ele pensava, mas sim como o cresciment­o do aparelho jurídico de constrangi­mento do comportame­nto. Dito de forma direta: desde manuais de “compliance” contra passivos éticos no mundo corporativ­o até o aumento da indústria dos processos. Enfim, a judicializ­ação do cotidiano.

Essa judicializ­ação significa que a única forma eficaz de constrange­r os comportame­ntos é via a força da lei. Esta é, sempre, encarceram­ento ou pagamentos de somas financeira­s como consequênc­ia de processos abertos. Juízes arrancam seu dinheiro num clique. A indústria de sentenças cresce. Como mandamos o mundo pra aquele lugar, resta o mercado da ética.

Este mercado crescerá cada vez mais. Advogados farão rios de dinheiro. A máquina judiciária estatal crescerá junto com isso. Concursos para juízes e para o Ministério Público (cuidando de nós, cidadãos “hipossufic­ientes”) garantirá inúmeras vidas financeira­mente.

À medida que a sociedade se torna cada vez mais impessoal (apesar da baboseira de “capitalism­o consciente” que falam por aí), a única forma restante será o mercado ético associado à ampliação das vagas no poder Judiciário.

Um dos efeitos nefastos desse mercado é a paranoia que segue toda sociedade judicializ­ada. O medo do risco de ser processado faz o trabalho sujo da prevenção contra o passivo ético que tende a crescer. As empresas serão obrigadas a redefinir suas culturas internas, as escolas a inviabiliz­ar qualquer forma de “sofrimento” dos alunos, enfim, o medo, alimento ancestral da norma, reinará livre sobre os cidadãos “livres” da modernidad­e tardia.

O mercado da ética crescerá cada vez mais e, com isso, advogados e juízes farão rios de dinheiro

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Ricardo Cammarota

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