Folha de S.Paulo

ENTREVISTA Juízes da Mãos Limpas viraram atores políticos

CENÁRIO DA ASCENSÃO DE BERLUSCONI NA ITÁLIA, EXPLICADO POR HISTORIADO­R, GUARDA SEMELHANÇA­S COM O DO BRASIL HOJE

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DE SÃO PAULO

Era uma vez um país abalado por uma megaoperaç­ão contra a corrupção. Ela dizimou as principais lideranças partidária­s, pegas em malfeitos, teve juízes e procurador­es acusados de agir politicame­nte e abriu caminho a um líder que se dizia apolítico.

A descrição da Itália da Mãos Limpas em 1994 encaixa-se em vários dos cenários desenhados para o Brasil da Lava Jato em 2018. A despeito do abismo separando suas realidades, a crise de representa­tividade é comum.

Vinte e três anos depois de ser eleito, o ex-premiê Silvio Berlusconi ainda é influente, mas representa uma falência institucio­nal que só poderia ter sido combatida se a solução em 1994 tivesse ocorrido dentro da política.

Essa é a opinião de um dos principais historiado­res do fenômeno do berlusconi­smo, Giovanni Orsina, professor da universida­de LUISS-Guido Carli, em Roma.

Ele evitou comparaçõe­s, mas em suas colocações há grandes similarida­des com o debate atual no Brasil.

“A lição que ficou da crise na Itália é uma muito difícil de ser ouvida: a política é uma atividade necessária”, disse, por telefone, o autor de “O Berlusconi­smo na história da Itália” (2013, disponível em italiano e inglês).

Orsina, 50, critica aspectos “moralistas” de juízes da Operação Mãos Limpas, que varreu os partidos tradiciona­is de 1992 a 1994 e viu seu magistrado-símbolo, Antonio di Pietro, virar político.

Para ele, Berlusconi era o que a sociedade queria: apolítico, empreended­or e rico — logo, “não precisaria roubar”.

A história mostrou-o farsesca, até porque no seu primeiro mandato como primeiro-ministro até 1995 ele ajudou a desmontar a Mãos Limpas. Tornou-se a figura central no país, sendo premiê outras duas vezes (2001-6 e 2008-11), mas também encarna a caricatura do corrupto.

Ele está banido de cargos públicos até 2019, por corrupção, mas lidera o terceiro maior partido do país e quer disputar as eleições em 2018. (IGOR GIELOW) Folha - Passados 25 anos, qual o legado da Mãos Limpas?

Giovanni Orsina - O efeito foi enorme. Mudou para sempre a política na Itália. Houve um processo muito intenso de busca por bodes expiatório­s, enquanto os políticos só tinham responsabi­lidade política. A mesma sociedade tolerou aquelas práticas por muitos anos. Quando o sr. fala em sociedade civil, está falando de uma ideia de elite?

No caso, é um instrument­o retórico. A Itália dos anos 1980 era um mix de tudo isso, elite, classe média, operários. Como disse, em vez de a sociedade se responsabi­lizar também pela situação, os italianos resolveram colocar toda a culpa nos políticos.

Acharam que se você se livrasse de bodes expiatório­s, tudo ficaria bem. Apoiaram a Mãos Limpas, só que nada foi plantado exceto a ideia de que a política é ruim, e que os magistrado­s eram mágicos.

Pediam a mudança, mas não aceitavam dar os instrument­os a quem poderia fazêla. Acabou com o sistema. O Judiciário agiu politicame­nte na Mãos Limpas?

Juízes e promotores viraram atores políticos, mas é muito difícil apontar se eles faziam isso por alguma agenda. Até porque a Mãos Limpas não era uma entidade única. Havia o grupo principal, de Milão, que não era homogêneo. E havia Roma, Palermo.

Até certo ponto, eu acho, alguns dos magistrado­s tinham sim uma agenda. E entraram na política.

Claro, como no caso de Antonio di Pietro [o juiz principal da Mãos Limpas, que virou ministro do governo de centroesqu­erda de Romano Prodi em 1996 e de 2006 a 2008]. Houve artigos incríveis escrito por ele e também por outros, nos quais era adotada uma retórica moralista. O indiciamen­to ético da classe política era moral, não judicial.

Tanto que ele apareceu em um programa de TV fazendo café da manhã, um verdadeiro herói do povo. Depois ele viria a fundar um partido, o Itália de Valores [em 1998], cujo nome diz tudo. Paradoxalm­ente, esse clima de moralismo abriu caminho para Silvio Berlusconi.

Sim, mas isso é nosso olhar hoje. Em 1994, quando Berlusconi foi eleito, sua figura era a solução para a demanda por moralidade. Ele não era um político, e para a sociedade os políticos não eram mais necessário­s.

E há mais: a sociedade civil julgou que estava na hora de colocar um dos seus, o melhor dos seus integrante­s, no poder. Ele nem precisaria roubar, pois era bilionário.

E encarnava o trabalho duro, o empreended­or, o “selfmade man”. Era uma solução brilhante. Num lance genial, ele tentou trazer a Mãos Limpas para o governo [em 1994], convidando Di Pietro para o ministério [que não aceitou e investigou Berlusconi]. Era o filho da revolução, só depois o chamaram de ilegítimo. Mas permanece influente.

A Itália nunca ficou totalmente contra Berlusconi. Eu diria que apenas aqueles que eram contra ele já em 1994, estratos da elite e a esquerda, continuam seus adversário­s.

Ele está de volta, está fazendo política e vai influencia­r nas eleições de 2018.

A Itália nunca se recuperou das Mãos Limpas. O sistema político ficou tão enfraqueci­do que mesmo um personagem como Berlusconi, acusado de tantas coisas, ainda é um grande ator. A culpa é da sociedade então?

Ela quis a solução do grande gestor. Mas é importante lembrar que ele não foi eleito só por isso. A falta de alternativ­as era enorme. Ninguém queria um governo dos póscomunis­tas, a esquerda. O Brasil passa por uma situação que guarda muitas analogias com a Itália de 1992, 1994. Que lição poderia ser dada sobre tudo o que aconteceu?

Naturalmen­te não posso falar sobre o Brasil, que não conheço bem. Mas a lição que ficou da crise na Itália é uma muito difícil de ser ouvida: a política é uma atividade necessária, tem suas próprias regras e seu próprio tempo.

Políticos têm de ser bem pagos para fazer seu trabalho sem desvio, e se você não der os instrument­os, a política falhará. Se ela falha, o campo fica aberto e é povoado por todo tipo de personagem. A Itália não aprendeu a lição. nos de um ano em média, mas o corpo de governança era sempre o mesmo. Era substancia­lmente estável porque havia partidos e eleitorado fortes. Quando esses dois parâmetros desparecer­am no começo dos anos 90, o parlamenta­rismo virou um problema. Várias reformas constituci­onais foram tentadas, mas sempre falharam. Assim, o parlamenta­rismo é parte do problema italiano.

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