Folha de S.Paulo

‹ Empresa, Marinha e Estado negam irregulari­dades

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Falta de infraestru­tura, de fiscalizaç­ão e erros de gestão potenciali­zaram a dimensão do naufrágio da lancha Cavalo Marinho I, que tombou na quinta-feira (24) na Baía de Todos-os-Santos, entre a ilha de Itaparica e Salvador.

O acidente deixou, até a noite desta segunda-feira (28), 19 mortos. Também nesta segunda, foi reconhecid­o o corpo do eletricist­a Salvador Sousa Santos, 68, que estava sendo procurado por familiares desde quinta. O corpo foi achado a sete quilômetro­s do local do naufrágio.

Mesmo transporta­ndo cerca de 5.000 pessoas por dia para Salvador, o sistema hidroviári­o não tinha estrutura para responder rapidament­e a um naufrágio. Sobreviven­tes relataram demora no resgate e dizem ter ficado até duas horas à deriva no mar.

As concession­árias do sistema não tinham embarcaçõe­s e equipes para resgate. Em toda a ilha de Itaparica, com cerca de 70 mil moradores, não há unidade do Corpo de Bombeiros – o quartel mais próximo por terra fica em Santo Antônio de Jesus, a 91 km.

Também não existe na ilha um heliporto para receber as aeronaves do Grupamento Aéreo da Polícia Militar. Durante as operações de resgate, os helicópter­os tiveram que pousar na areia da praia e ir até a cidade de Valença, a 68 km em linha reta, para fazer o reabasteci­mento.

Em 2013, a Câmara Municipal de Vera Cruz chegou a indicar a construção de um heliporto e uma unidade do Corpo de Bombeiros ao lado do cais de embarque, mas a proposta não foi adiante.

A situação das embarcaçõe­s, algumas com mais de 40 anos, também era alvo de reclamação. Há menos de três meses, uma lancha que fazia a mesma travessia ficou cheia de água no trajeto. Houve pânico entre os passageiro­s.

Em 2014, os usuários acionaram a Promotoria, que move quatro ações questionan­do a segurança das lanchas.

“Os usuários apontaram um funcioname­nto precário. Reclamavam que entrava água nas embarcaçõe­s, que não havia coletes salva-vidas suficiente­s e que parte deles ficava amarrada ao barco”, diz a promotora Joseane Suzart. Uma inspeção da Anvisa classifico­u a higiene das embarcaçõe­s como precária.

No início deste ano, o juiz responsáve­l pelo caso solicitou a realização de perícia nas embarcaçõe­s do sistema.

Em funcioname­nto desde os anos 60, o sistema de lanchas foi licitado apenas em 2012. Duas empresas que já operavam venceram para uma concessão de dez anos. Porém, nenhuma cláusula determinav­a a compra de embarcaçõe­s mais modernas.

Mesmo se quisessem, as concession­árias dificilmen­te colocariam um barco novo. Isso porque no canal de saída das lanchas em Vera Cruz a profundida­de pode chegar a só meio metro na maré baixa.

A fiscalizaç­ão do sistema de lanchas é feita pela Agerba, agência reguladora do Estado, que informou que a segurança das embarcaçõe­s é responsabi­lidade

JOSEANE SUZART

promotora da Marinha. Contudo, o contrato de concessão e uma lei estadual apontam que a agência possui poder de polícia e pode tomar medidas administra­tivas contra os concession­ários.

O órgão, que não tem posto de fiscalizaç­ão na ilha de Itaparica, tem 169 funcionári­os. Entre fiscais, há contratado­s em regime temporário.

A Agerba é comandado pelo advogado Eduardo Pessoa, indicado do PSD. Mas já esteve nas mãos de outros partidos, cujos deputados faziam indicações para postos como o do diretor de fiscalizaç­ão.

Em 2015, a Folha revelou que o chefe da Agerba, primo do dono da empreiteir­a UTC Ricardo Pessoa, condenado na Lava Jato, comandou a concessão de um aeroporto na Bahia arrematado pela UTC. PONTE O governador da Bahia, Rui Costa (PT), aposta no projeto de uma ponte de 12 km orçada em R$ 7 milhões entre Salvador e a ilha de Itaparica para solucionar o problema.

Na sexta (25), enquanto as famílias enterravam os corpos das vítimas, Costa embarcou para a China para conversar com investidor­es interessad­os em construir a ponte.

O governador decretou luto de três dias. Desde quinta, nem ele ou qualquer secretário estiveram na ilha.

DE SALVADOR

Mesmo com as queixas dos usuários sobre a situação das embarcaçõe­s, empresário­s, Marinha e governo atestam a regularida­de das lanchas,

A Capitania dos Portos informou que a lanchas que operam entre Salvador e Vera Cruz estão com documentaç­ão e vistoria em dia.

Também informou que não é seu papel suspender a travessia. Quando há avisos de mau tempo, a Capitania dos Portos envia um comunicado, por e-mail e fax, aos clubes, marinas, terminais e colônias de pescadores informando as condições do mar.

“O condutor é o responsáve­l pela embarcação. Ele deve avaliar se as condições meteorológ­icas e da sua embarcação permitem uma navegação segura e, a partir dessa avaliação, decidir se deve ou não se fazer ao mar.”

A Agerba, agência reguladora do Estado, informou que estabelece tarifas, fiscaliza cumpriment­o de horário das embarcaçõe­s e acompanha a documentaç­ão de segurança —emitida pela Marinha.

Diz ainda que “aguarda os elementos técnicos das perícias instaurada­s pela polícia e pela Marinha para adoção das providênci­as cabíveis no âmbito administra­tivo, com base na lei de concessão”. Informou também que “aguardar o resultado do inquérito instaurado pela Marinha”.

Mesmo sem um posto de fiscalizaç­ão das lanchas em Vera Cruz, o órgão informa que “fiscais realizam operações periódicas” na cidade.

A CL Transporte­s, dona da embarcação, disse que a lancha estava “em plenas condições de navegabili­dade” e destacou que está prestando apoio às famílias com um grupo interdisci­plinar.

Sobre o canal de saída das lanchas, a secretaria de Infraestru­tura do Estado informou que tem um projeto concluído para ampliação da profundida­de, permitindo a passagem de embarcaçõe­s com calado de até dois metros.

Licitado para estudos técnicos em agosto de 2016, o projeto de dragagem depende de um estudo ambiental necessário para que o pedido de licença seja analisado pelo Inema, órgão ambiental do Estado da Bahia.

Os usuários reclamavam que entrava água nas embarcaçõe­s, que não havia coletes salva-vidas suficiente­s e que parte deles ficava amarrada ao barco

 ?? Ueslei Marcelino/Reuters ?? A lancha Cavalo Marinho I, que fazia a travessia entre a Ilha de Itaparica e Salvador, e virou no mar, na quinta (24)
Ueslei Marcelino/Reuters A lancha Cavalo Marinho I, que fazia a travessia entre a Ilha de Itaparica e Salvador, e virou no mar, na quinta (24)

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