Folha de S.Paulo

Fora da ordem

- LAURA CARVALHO COLUNISTAS DA SEMANA segunda: Marcia Dessen; terça: Nizan Guanaes; quarta: Alexandre Schwartsma­n; quinta: Laura Carvalho; sexta: Nelson Barbosa; sábado: Marcos Sawaya Jank;

PASSADOS CERCA de três anos desde o início da maior crise econômica da história brasileira, fica cada vez mais claro que estamos diante de um reflexo no espelho do milagrinho vivido em meados dos anos 2000. Se o cresciment­o da economia naquele período veio junto com uma forte criação de empregos formais e uma redução das disparidad­es salariais entre os trabalhado­res da base e do meio da pirâmide, a crise atual atinge sobretudo os trabalhado­res menos instruídos.

Os números mais recentes do mercado de trabalho mostraram que o pequeno recuo na taxa de desemprego entre abril e junho de 2017 — de 13,7% para 13%— deu-se apesar de uma queda no número de empregados com carteira assinada no setor privado. E, mesmo com o aumento no número de trabalhado­res domésticos, empregados sem carteira assinada e trabalhado­res por conta própria, a taxa de desemprego entre aqueles que não completara­m o ensino médio ainda é de 21,8%.

Mas, se a crise vem revertendo nosso passado recente, uma retomada do cresciment­o com aumento da formalizaç­ão e redução das desigualda­des salariais no mercado de trabalho dependeria do restabelec­imento de alguns dos elos perdidos pelo caminho.

É verdade que o cenário externo favorável foi fundamenta­l para permitir que o cresciment­o dos salários, a redução das desigualda­des e o aumento dos investimen­tos públicos em infraestru­tura física e social entre 2005 e 2010 se desse com inflação e contas públicas controlada­s.

No entanto, um mecanismo importante no cresciment­o que vigorou naquele período foi a dinâmica virtuosa entre a expansão do consumo dos trabalhado­res de baixa renda e o cresciment­o de setores muito intensivos em mão de obra menos qualificad­a.

Em outras palavras, a expansão dos salários na base da pirâmide aumentou muito a demanda por serviços como restaurant­es e salões de beleza e dinamizou a construção civil. Como esses setores empregam muitos trabalhado­res menos instruídos, o grau de formalizaç­ão e os salários na base da pirâmide subiam mais ainda, reforçando o processo.

Muitos trataram de demonizar o cresciment­o do consumo naqueles anos. Mas o fato é que, ainda que a continuida­de daquele processo exigisse outras medidas —de estímulo ao desenvolvi­mento de setores de maior complexida­de tecnológic­a e maior cresciment­o da produtivid­ade, por exemplo—, as vendas maiores foram capazes de levar empresário­s de diversos setores a comprar novas máquinas e equipament­os. Com isso, os investimen­tos cresceram até mais do que o consumo no período.

Da mesma forma, a alta do desemprego e a queda da demanda elevaram o grau de ociosidade na indústria e nos serviços, contribuin­do, junto com o alto endividame­nto, para derrubar os investimen­tos privados.

“Há um ano, todos imaginavam que a economia brasileira poderia voltar a crescer a partir do aumento de confiança, que geraria investimen­tos, renda e consumo”, admitiu o presidente do Banco Central, Ilan Goldfajn, em entrevista a esta Folha. “Essa ordem está um pouco diferente”, percebeu Goldfajn.

“Para bater no investimen­to, a confiança tem que passar o obstáculo da capacidade ociosa, que ainda é muito grande”, completou o presidente do BC em diagnóstic­o plenamente compatível com o que há de melhor na macroecono­mia keynesiana.

Se finalmente o consumo das famílias deixou de ser tratado como um vilão, talvez seja a hora de os mecanismos de distribuiç­ão de renda merecerem uma segunda chance. LAURA CARVALHO,

Se o consumo deixou de ser vilão, talvez seja a hora de a distribuiç­ão de renda merecer uma nova chance

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