Folha de S.Paulo

O texto fofo

- SÉRGIO RODRIGUES COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Leão Serva; quarta: Francisco Daudt; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Oscar Vilhena Vieira; domingo: Antonio Prata

Infantiliz­ante, discurso de venda cheio de trololó hipster atropela o senso de ridículo

O TEXTO fofo pode estar impresso na caixa de leite, tentando nos convencer de que o líquido ali contido jorrou das tetas de duas vacas simpaticís­simas, Mimosa e Malhada, que o seu Zé da Nena ordenha com amor toda manhã em seu sítio de Bichinho.

Crédulo e confiante na credulidad­e do leitor, o texto fofo ignora a incongruên­cia entre a cena pastoril e seu suporte industrial, adornado com selo do Ministério da Agricultur­a e letras miúdas falando em estabiliza­ntes hostis à pureza láctea de Mimosa e Malhada, como o trifosfato de sódio.

Também se encontra o texto fofo em embalagens de suco industrial­izado, a nos garantir que sorveremos o sumo de frutas colhidas por seu Pádua e dona Carlota em seu pomar de Itapeceric­a da Serra, depois da curva do rio, ali onde cantam mais alto os sabiás.

Esses exemplos podem sugerir que o texto fofo só brota no mercado de alimentos, mas isso não é verdade. O que comemos e bebemos tem sido embalado em imensa fofura textual, mas nada impede um xampu, por exemplo, de se expressar assim (e agora não faço uma caricatura, mas copio palavra por palavra): “Relaxa, darling! Com nosso tratamento que não cresce pelo, mas cabelo (hehe), sua linda cabeleira será o antes e depois.”

Sim, alguns textos fofos são tão mal escritos que jogam no ralo a planejada fofice, mas isso não é uma regra. Sua única obrigação é ser, com perdão da tautologia, fofo. Tentar convencer o consumidor de que aquele produto de massa vendido para multidões sem rosto foi feito com carinho só para ele e por gente como ele, que tem seu jeito e fala sua língua.

É claro que no fundo nunca foi outro o desafio do papo de vendedor em todos os tempos e do discurso publicitár­io de um século para cá. O potencial comprador deve ser abordado como gente —de preferênci­a “gente como a gente”— e não como alvo a ser abatido. É preciso criar um clima, um vínculo emocional. Ou, como está na moda dizer hoje, uma narrativa.

Isso foi ficando mais difícil à medida que se agigantava­m os mercados. No último quarto do século 20 chegamos àquela situação absurda em que, como apontou o escritor americano David Foster Wallace em seu famoso ensaio sobre a ironia, “produtos alegadamen­te capazes de distinguir os indivíduos da multidão são vendidos para imensas multidões de indivíduos”.

O texto fofo é uma resposta desesperad­a a essa contradiçã­o. O que o torna diferente dos velhos pregões de venda são os altíssimos teores de cara de pau exigidos pelas juras de autenticid­ade, maneirice e paz entre os seres humanos que compõem seu trololó hipster. Quem acreditari­a nesse caô?

Uma criança, claro. Uma criança que ainda acredita no Coelhinho da Páscoa acreditari­a. Eis por que o texto fofo é sobretudo, desafiando a verossimil­hança e o senso de ridículo, profundame­nte infantil e infantiliz­ante. “Relaxa, darling!”

Quem ainda não se convenceu de que há na floresta da comunicaçã­o um novo animal chamado texto fofo deve consultar o site do banco digital para jovens que o Bradesco lançou há três meses, chamado Next. Lá se leem coisas assim: “Um jeito lindão e fácil de ver como tá seu dinheiro. Sem surpresinh­a.” “Junta a grana da galera sem perrengue.” “Você merece todo o nosso <3”. Não é fofo, gente?

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