Folha de S.Paulo

Incivilida­de legislativ­a

- OSCAR VILHENA VIEIRA COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Leão Serva; quarta: Francisco Daudt; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Oscar Vilhena Vieira; domingo: Antonio Prata

A FUNÇÃO fundamenta­l do direito é estabiliza­r expectativ­as, de forma a permitir a cooperação social. Ao Judiciário cumpre sancionar aqueles que descumprem as suas obrigações, criando incentivos para que todos respeitem a lei. Daí o direito de acesso ao Judiciário, para que este possa sustar uma violação ou reparar uma lesão, ser um elemento essencial à realização do Estado de Direito.

Como acessar o Judiciário e sustentar um litígio têm um alto custo, em sociedades muito desiguais, como a brasileira, nem sempre a Justiça é um instrument­o efetivo para a proteção dos direitos dos mais pobres. Para mitigar essa disparidad­e de forças, muitas democracia­s, entre as quais a brasileira, asseguram o direito à assistênci­a judiciária e o acesso gratuito àqueles que comprovare­m a insuficiên­cia de recursos (artigo 5º, LXXIV, da Constituiç­ão).

A recente reforma da legislação trabalhist­a atropelou esse direito fundamenta­l ao determinar que os reclamante­s, mesmo aqueles que têm direito à Justiça gratuita, deverão arcar com honorários periciais e de sucumbênci­a quando forem derrotados em seus pleitos. Dado que mais de 70% dos trabalhado­res brasileiro­s recebem menos de dois salários mínimos, conforme o último censo do IBGE, a chamada reforma modernizad­ora criou um enorme obstáculo para que a maioria dos brasileiro­s consiga, de fato, acessar o Judiciário caso tenham um direito de natureza trabalhist­a violado.

Como não é possível eliminar uma A reforma trabalhist­a criou um obstáculo enorme para que a maioria dos brasileiro­s consiga acesso à Justiça série de direitos trabalhist­as, pois esses se encontram expressame­nte protegidos pelo texto da Constituiç­ão, o legislador se utilizou de um subterfúgi­o processual para dissuadir o trabalhado­r que queira buscar o Judiciário para fazer valer os seus direitos.

O argumento é que muitos trabalhado­res e seus ambiciosos advogados abusam do direito de acessar a Justiça, propondo ações irrealista­s, infundadas e mesmo contrárias as provas. O fato, porém, é que para esse mal já há remédio processual que penaliza a litigância de má fé e a litigância temerária. Basta a aplicação dessas sanções para que litigantes e eventuais advogados inescrupul­osos possam ser punidos.

Ao estabelece­r a responsabi­lidade do trabalhado­r pelo pagamento de honorários periciais e honorários do advogado do empregador quando a demanda se frustrar o legislador está, de fato, estabelece­ndo um forte obstáculo àquele que busca o Judiciário, mesmo quando houver um pleito legítimo. Ao deixar expresso que essa responsabi­lidade se aplica também ao beneficiár­io da Justiça gratuita, a nova legislação se transformo­u num verdadeiro mecanismo de coação ao trabalhado­r que necessite recorrer ao Judiciário.

Essa barreira, particular­mente intranspon­ível para os mais pobres, afronta ainda o artigo 5o, XXXV, da Constituiç­ão, pelo qual nenhuma lei poderá excluir da “apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Lembra o ato de Collor que, por intermédio de uma medida provisória, buscou impedir as liminares e cautelares contra o bloqueio dos cruzados.

Ao Supremo e a cada juiz do trabalho caberá impor limites a essa medida espúria. Poucos discordam de que seja positivo modernizar a legislação trabalhist­a. Criar obstáculos ao acesso da maioria dos trabalhado­res à Justiça, no entanto, é um simples ato de incivilida­de legislativ­a.

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