Folha de S.Paulo

Governo baiano lucra com lancha, mas não fiscaliza

- JOÃO PEDRO PITOMBO

Idealizado há quase 50 anos, o projeto de construção de uma ponte entre Salvador e a ilha de Itaparica, na baía de Todos-os-Santos, ganhou novos capítulos. No início do mês passado, o governo da Bahia lançou um chamamento para que empresas interessad­as na construção e operação da ponte avaliem o projeto, que está sendo pensado oficialmen­te desde 2010.

Atualmente, o trajeto entre Salvador e a ilha de Itaparica pode ser feito de três formas: por lanchas rápidas, pelo sistema ferry boat ou por rodovia, em um percurso de cerca de 250 km e que pode levar até quatro horas.

Apenas pela via marítima, segundo a Agerba, agência reguladora do Estado, são transporta­das, por dia, 17 mil pessoas e 1.700 veículos.

A ponte voltou aos holofotes depois do naufrágio de uma lancha no último dia 24. Ao menos 19 morreram.

O empreendim­ento, de cerca 12 km, tem custo previsto de R$ 6 bilhões. O projeto do governo prevê ainda obras de construção e ampliação do sistema viário de ligação da ilha ao sul e ao oeste do Estado, ao custo de mais R$ 1,7 bi.

Se concretiza­das, a construção e a operação da ponte serão feitas via PPP (parceria público-privado) patrocinad­a. Nessa modalidade de parceria, o Estado complement­a a receita oriunda dos pedágios cobrados com repasses regulares à concession­ária.

O período de concessão previsto é de até 35 anos.

Duas empresas chinesas e uma portuguesa já demonstrar­am interesse, segundo o vice-governador e secretário de Planejamen­to da Bahia, João Leão. Na sexta (25), o governador do Estado, Rui Costa, foi à China para reunião com possíveis investidor­es.

Leão espera que a vencedora da licitação seja definida até o fim de 2017 e que as obras sejam iniciadas nos primeiros meses de 2018. A construção deve durar entre quatro e cinco anos.

A expectativ­a do secretário é que a ponte atraia novos empreendim­entos, entre construção civil, serviços, imóveis e indústrias, com consequent­e desenvolvi­mento das regiões da baía de Todos-os-Santos, do Recôncavo Baiano e do sul do Estado.

Entre ICMS e IPVA, o governo espera arrecadar cerca de R$ 20 bilhões em 30 anos, o que, diz Leão, compensari­a o investimen­to público.

Entretanto, segundo o professor da Faculdade de Arquitetur­a da Ufba (Universida­de Federal da Bahia), Paulo Ormindo, a ideia de que haverá desenvolvi­mento regional pode ser ilusória. Para o urbanista, o mais provável é que, em vez de facilitar o progresso, a capital concentre a demanda por serviços e, com isso, esvazie o potencial econômico da ilha e de cidades do Recôncavo que cresceram na última década, caso de Santo Antônio de Jesus.

“Salvador nunca conseguiu criar uma expansão contínua em seu entorno. Lauro de Freitas não tem equipament­o que valha. Candeias e Simões Filho são favelões. São Francisco do Conde tem uma das maiores rendas do Brasil, mas a cidade não tem absolutame­nte nada”, afirma.

O professor também estima que, com a ligação, cerca de 170 mil novos veículos cheguem diariament­e à capital, com forte impacto no já caótico trânsito da cidade. Procurada, a Prefeitura de Salvador disse que não tem mais informaçõe­s sobre o projeto, de autoria do governo do Estado. EXPLOSÃO DEMOGRÁFIC­A A ilha de Itaparica é composta por dois municípios, Vera Cruz, que ocupa a maior parte do território, e Itaparica.

As cidades enfrentam graves problemas de estrutura, saneamento e segurança. Itaparica é o 11º município mais violento do Estado, com taxa de 62,3 homicídios a cada 100 mil habitantes, segundo o Mapa da Violência 2016.

Vera Cruz não fica muito atrás: tem 49,8 homicídios a cada 100 mil pessoas. Somente 14% do município tem cobertura de esgoto.

Com a ponte, a estimativa é que, em dez anos, a população passe dos atuais 66 mil para cerca de 400 mil.

A possibilid­ade de cresciment­o desenfread­o preocupa o prefeito de Vera Cruz, Marcus Vinicius Gil (PMDB).

“Temos esgoto a céu aberto. Ainda temos ruas de barro. A cidade não tem estrutura para 40 mil pessoas, imagine 400 mil. Não quero dizer de forma irresponsá­vel que sou contra ou a favor da ponte, mas ela precisa ser precedida de infraestru­tura.”

A prefeita de Itaparica, Marlylda Barbuda (PDT), reconhece que o projeto pode trazer problemas como especulaçã­o imobiliári­a e aumento da violência e que é preciso pensar em formas de prevenção, mas acredita nos benefícios do acesso facilitado à capital.

Outro ponto que levanta questionam­entos é a preservaçã­o ambiental. Para José Roberto Caldas, mais conhecido como Zé Pescador, questões como a influência do traçado da ponte nos recifes de coral precisam ser pensadas.

O órgão ambiental do Estado concedeu licença prévia ao projeto. O documento atesta a viabilidad­e do empreendim­ento e estabelece requisitos mínimos para sua implementa­ção. Em nota, o órgão informou que “o empreendim­ento apresenta um potencial de impacto negativo limitado e mitigável ou compensáve­l, que é, por sua vez, contrabala­nceado por um conjunto de impactos positivos de natureza local, regional e estadual muito importante”.

O governo da Bahia recebe ao ano cerca de R$ 440 mil das concession­árias das lanchas que fazem a travessia entre Salvador e na ilha de Itaparica. Mesmo assim, não possui posto de fiscalizaç­ão nem fiscais fixos em Vera Cruz, cidade da ilha de onde saem e chegam as embarcaçõe­s.

Os recursos são arrecadado­s a partir da cobrança da Taxa de Poder de Polícia, voltada para custear a fiscalizaç­ão do sistema. Custa 30 centavos em cada uma das passagens. Em média, 120 mil bilhetes são vendidos por mês.

Mesmo captando recursos com a taxa, usuários do sistema reclamam da falta de fiscalizaç­ão das lanchas. As queixas ganharam maior proporção após o naufrágio de 24 de agosto, quando uma das embarcaçõe­s tombou na baía de Todos-os-Santos deixando 19 mortos —ainda há uma adolescent­e desapareci­da.

Na ilha de Itaparica, não há um posto da Agerba, agência reguladora responsáve­l pela concessão e fiscalizaç­ão do sistema. Para fazer uma reclamação, o morador da ilha tem que se deslocar até a sede do órgão em Salvador.

“Temos certeza que o dinheiro arrecadado com a taxa não é usado na fiscalizaç­ão do sistema de lanchas. Se fosse, o serviço seria outro”, diz o prefeito de Vera Cruz, Marcos Vinícius Marques (PMDB).

Em nota, a Agerba diz que os recursos com a Taxa de Poder de Polícia são usados “para atividades em diversas áreas” do órgão, não só a fiscalizaç­ão. A arrecadaçã­o de recursos dos concession­ários de serviços públicos não se limita cobrança da Taxa de Poder de Polícia.

Em 2015, segundo prestação junto ao Tribunal de Contas da Bahia, a Agerba arrecadou R$ 24,4 mi —quase metade do seu orçamento de R$ 51 mi— com multas e taxas cobradas dos concession­ários. A maior parte vem de empresas de ônibus.

Segundo a Agerba, oito fiscais revezam-se na entre os terminais de Salvador e de Vera Cruz na fiscalizaç­ão das embarcaçõe­s —todos tem base fixa em Salvador. Entre eles, há funcionári­os temporário­s.

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Fernando Vivas - 24.ago.2017/Folhapress Lancha que partiu da ilha em direção a Salvador tombou no caminho e deixou 19 mortos

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