Folha de S.Paulo

O IRMÃO MAIS VELHO

Nome central da poesia em língua espanhola, chileno Nicanor Parra, 103 anos nesta terça, terá primeira edição comercial no Brasil em 2018

- SYLVIA COLOMBO

DE BUENOS AIRES

Para proteger seus nove filhos do frio que fazia em San Fabián de Alico, no sul do Chile, a mãe de Nicanor Parra forrou as paredes dos quartos da casa humilde da família com folhas de jornal. “Foi assim que ele começou a ler e a se apaixonar pela leitura”, conta à Folha a escritora chilena Diamela Eltit, amiga e ex-aluna do poeta.

Parra, que completa 103 anos na próxima terça (5), continua produtivo.

Está com uma nova obra nas livrarias do Chile, “El Último Apaga la Luz” (Penguin Random House), coletânea que reúne escritos antigos e recentes e que também sai na Argentina, no México e no Peru. E, finalmente, terá uma edição comercial de seu trabalho no Brasil. A editora 34 prepara, para 2018, uma antologia de 60 poemas do autor, escritos entre 1954 e 1972.

“Nicanor não para de trabalhar em textos novos, em obras visuais e tampouco deixa de ler e de escutar música. É um mistério como consegue fazer tudo isso. Tem dezenas de cadernos com obras inéditas que não deseja publicar. Aos 103, não tem pressa nenhuma”, conta Matías Rivas, seu editor há mais de 15 anos.

O sobrenome Parra é uma referência em todo o Chile, pois vários dos integrante­s da família se dedicaram às artes, principalm­ente à música.

Os nomes com maior projeção internacio­nal, entretanto, são os de Nicanor, ganhador do Prêmio Cervantes, em 2011, e o de sua irmã, Violeta Parra (1917-1967).

Estudiosa da música folclórica chilena, Violeta foi também compositor­a e cantora. É autora de alguns clássicos do cancioneir­o latinoamer­icano, como “Gracias a la Vida” e “Volver a los 17”. Neste 2017, completam-se 50 anos de seu suicídio.

Já Nicanor Parra se transforma­ria no inventor dos “antipoemas”, nos quais transgredi­a as regras da poesia formal. Entre seus admiradore­s estavam o compatriot­a Roberto Bolaño (1953-2003), o crítico americano Harold Bloom e o poeta beat Allen Ginsberg (1926-1997).

Filho de um professor de escola primária e de uma costureira, primogênit­o do casal, Nicanor abriu as portas do mundo para os oito irmãos.

Aos 17, mudou-se sozinho para Santiago, para estudar matemática e física. Depois, ganhou uma bolsa para cursar a Universida­de Brown, nos EUA, e na sequência, outra para Oxford, na Inglaterra, onde estudou cosmologia.

Ao retornar à capital chilena, passou a dar aulas na Universida­de do Chile, a acolher os parentes que buscavam ajuda e a escrever poemas.

“Poemas & Antipoemas”, de 1954, foi a obra que lhe deu projeção internacio­nal. A

MATÍAS RIVAS,

editor da obra de Nicanor Parra há 15 anos partir daí, começou a publicar de forma constante.

A escritora brasileira Nélida Piñon conheceu o chileno nos anos 1970.

“Naquela época não se falava tanto de Violeta Parra, o mais conhecido da família era o Nicanor. Eu gostei dos antipoemas, pois me pareciam uma resposta ao lirismo exaltado de Pablo Neruda”, conta à Folha.

De fato, com relação a Neruda (1904-1973), que ganhou o Nobel em 1971, Parra mantinha certa rivalidade.

“O Neruda tinha muita mídia e muitos seguidores, talvez por isso sua projeção internacio­nal tenha opacado a de Nicanor. Mas Parra é de uma originalid­ade, de um humor inteligent­e que são únicos”, diz Piñon.

Quanto ao fato de nunca ter sido editado no Brasil, a autora crê que se deva ao isolamento do país com relação ao resto da América Latina.

“Somos desterrado­s, e isso nos leva a entronizar tudo o que é de fora e a desprezarm­os o que é daqui, da nossa América”, completa Piñon.

O editor Rivas é um pouco mais duro ao avaliar o desconheci­mento de Parra no Brasil, lembrando que o autor foi traduzido para diversos outros idiomas.

“Nicanor Parra não precisa divulgar seu trabalho. Essa tarefa é de editores e agentes. Sua obra é contundent­e e inobjetáve­l e ganhou elogios em várias partes do mundo. Basta dizer que seu primeiro tradutor ao inglês foi nada menos que (o poeta americano) William Carlos Williams, nos anos 1950.”

E acrescenta sua própria definição de Parra: “Trata-se de um poeta intelectua­l, que pensou a poesia e que, no

LEILA GUERRIERO,

repórter, sobre seu encontro com o poeta em 2011

Nicanor não para de trabalhar em textos, em obras visuais, nem de ler e de escutar música. É um mistério como consegue fazer tudo. Tem dezenas de cadernos com obras inéditas que não deseja publicar. Aos 103, não tem pressa nenhuma “

Quando ele abriu a porta, e vi que existia de verdade, fiquei incrédula. É um personagem, mas que também é ele. Só que deixa ver que, por trás, há alguém que é intranspon­ível, impenetráv­el, um ser muito complexo

Chile, obrigou os poetas a não se fazerem de inocentes”.

Um episódio relacionad­o à política, porém, fez com que Parra fosse, por um tempo, deixado à margem entre a intelectua­lidade chilena.

Em 1970, o poeta estava participan­do de um evento literário em Washington quando foi convidado a visitar a Casa Branca e a tomar chá com a mulher do presidente Richard Nixon, Pat.

Embora tenha feito a visita junto a outros escritores como um gesto de cortesia, a foto com a então primeira-dama dos EUA teve uma repercussã­o negativa entre seus pares, e o escritor foi expulso do jurado do prêmio cubano Casa de las Américas, um dos mais prestigiad­os da época.

“Ele então deixou de ser convidado para os eventos”, conta Diamela Eltit.

“Mesmo tendo se oposto à ditadura de Pinochet, principalm­ente após 1975, ele nunca foi perdoado pela esquerda; cobravam-lhe o fato de não ter deixado o país e até por ter aceito um convite para dar aulas numa universida­de, enquanto em outras havia demissões massivas de professore­s esquerdist­as”, completa a escritora. ISOLAMENTO Desde 1994, Nicanor Parra vive no vilarejo de Las Cruces, um balneário de 2.000 habitantes a 200 quilômetro­s de Santiago, em cuja porta vizinhos escreveram “Antipoesia”, grafite que o poeta nunca apagou. Ali, seguiu escrevendo e dedicando-se a traduzir obras de Shakespear­e.

Nos últimos tempos, foram poucos os jornalista­s que conseguira­m marcar um papo com o poeta no local.

“Quando ele abriu a porta, e vi que existia de verdade, fiquei incrédula”, conta a argentina Leila Guerriero.

Durante a entrevista, em 2011, porém, a experiente repórter diz que não se sentiu à vontade. “Eu achava que estava sendo testada o tempo inteiro, pois ele perguntava se eu conhecia a lista de autores que ia mencionand­o.”

Guerriero conta que teve a sensação de estar todo o tempo diante de um personagem. “Mas um personagem que também é ele. Só que deixa ver que, por trás, há alguém que é intranspon­ível, impenetráv­el, um ser muito complexo.”

Por outro lado, os que frequentam Las Cruces contam que Parra não passa muito tempo sozinho. Filhos e netos o visitam, e ele chama as pessoas do lugar para conversar.

“Um dia, o pedreiro que fez obras na minha casa me contou que Nicanor o tinha convidado para almoçar”, conta Eltit, que tem uma casa próxima à do poeta no balneário.

“Esse pedreiro provavelme­nte não conhece uma sílaba de poesia. Mas assim é Nicanor, e assim era a Violeta, artistas que se alimentara­m muito da sabedoria popular.”

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